BLOG ESPIRITUALIDADE E RELIGIOSIDADE. AUTOR: ÁLAZE GABRIEL GIFTED.
Disponível em http://espiritualidade-e-religiosidade.blogspot.com.br
Autoria:
Zila
van der Meer Sanchez - Doutora em Ciências pela
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pesquisadora do Centro Brasileiro
de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid);
Solange
Aparecida Nappo - Professora adjunta da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pesquisadora do Centro Brasileiro
de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid)
RESUMO
CONTEXTO: A religiosidade e a espiritualidade vêm sendo
claramente identificadas como fatores protetores ao consumo de drogas em
diversos níveis.
OBJETIVO: A presente revisão da literatura pretendeu
descrever os principais estudos científicos que tratam do papel da
religiosidade no tratamento e na prevenção do consumo de drogas.
MÉTODO: As fontes citadas neste artigo de revisão são
indexadas nas bases de dados PubMed e Scielo, entre 1976 e 2006, tratando de
questões relativas à religiosidade, à espiritualidade e ao consumo de drogas.
RESULTADOS: Estudos têm apontado para evidência de que as
pessoas que freqüentam regularmente um culto religioso, ou que dão relevante
importância à sua crença religiosa, ou ainda que praticam, no cotidiano, as
propostas da religião professada, apresentam menores índices de consumo de
drogas lícitas e ilícitas. Além disso, os dependentes de drogas apresentam
melhores índices de recuperação quando seu tratamento é permeado por uma
abordagem espiritual, de qualquer origem, quando comparados a dependentes que
são tratados exclusivamente por meio médico.
CONCLUSÕES: Devido ao forte papel de assistência social das
religiões no Brasil, a exploração deste tema no contexto brasileiro seria de
grande relevância para a saúde pública.
Palavras-chave: Religiosidade, espiritualidade, drogas
psicotrópicas, tratamento, prevenção.
INTRODUÇÃO
Diversos são os estudos científicos que apontam a
relevância da prática de uma religião e da fé para a manutenção, assim como
para a melhora das condições de saúde (Moreira-Almeida et al., 2006;
Koenig et al., 2001). Já existe literatura científica indexada,
substancial e concreta, associando, positivamente, a religiosidade ao bem-estar
físico e mental do ser humano (George et al., 2002; Miller e Thoresen, 2003).
Apesar de esses estudos terem enorme dificuldade
para estabelecer um padrão medidor da religiosidade, ao longo dos últimos 30
anos dados quantitativos vêm apontando para a relevância desta na prevenção do
consumo de drogas. As evidências apontam para a existência de uma associação
positiva entre o não-consumo de drogas e os altos índices de religiosidade que,
em particular, são expressos pelas idas freqüentes à igreja e pela importância
dada à religião professada (Parfrey, 1976; Dalgalarrondo et al., 2004).
Os estudos científicos publicados em revistas
indexadas apontam para o papel fundamental da religiosidade, principalmente no
tratamento de doenças crônicas e severas. Os pacientes são beneficiados pela
prática religiosa, em especial nos períodos que estão sujeitos a mudanças
sociais e psicológicas estressantes oriundas das condições geradas pela
patologia (Koenig, 2003). Dentro desse perfil, encontram-se os dependentes de
drogas que, por serem portadores de patologia crônica, vivenciam momentos
estressantes e traumáticos ao longo do seu processo de recuperação (Sanchez,
2006).
Booth e Martin (1998), analisando os dados
existentes na literatura científica até 1997, afirmaram que se observa
claramente uma relação inversa entre a religiosidade e o uso de substâncias
psicotrópicas, embora não se possam descartar os diversos problemas derivados
da eventual mensuração dos índices de religiosidade, além de um certo viés
amostral de alguns desses estudos. Os autores também apontam para um efeito
positivo da religião na recuperação dos dependentes, destacando o papel
fundamental desempenhado pela Igreja na área da prevenção e do tratamento
destes. Da mesma maneira, Koenig et al. (2001) afirmaram haver, até o
ano 2000, mais de 100 estudos interessantes no campo da religião relacionados
com o abuso de substâncias psicotrópicas. A maioria desses estudos enfatizou a
relação inversa da religiosidade com o consumo de drogas, teorizando sobre os
supostos mecanismos de recusa das drogas quando em um cenário de contexto religioso,
baseados em dados obtidos por levantamentos epidemiológicos com características
estritamente quantitativas.
Vale destacar que os estudos dentro do tema
"religiosidade e drogas" tendem a enfocar mais o papel da
religiosidade para a prevenção primária do consumo e, também, o da
espiritualidade no que respeita ao tratamento da dependência (Booth e Martin,
1998).
Os termos "religiosidade" e
"espiritualidade" costumam ser utilizados como sinônimos nos estudos
empíricos (Miller e Thoresen, 2003). No entanto, existe um infindável debate
epistemológico da utilização desses conceitos. Para padronizar a informação, no
presente trabalho utilizou-se a conceituação de Sullivan (1993) para a
espiritualidade e a de Miller (1998) para a religiosidade. De acordo com o primeiro,
a espiritualidade é uma característica única e individual que pode ou não
incluir a crença em um "Deus", sendo aquela responsável pela ligação
do "eu" com o Universo e com os outros, a qual também está além da
religiosidade e da religião. Já a religiosidade representa a crença e a prática
dos fundamentos propostos por uma religião (Miller, 1998).
Para o levantamento dos artigos citados neste
artigo de revisão, foi feita uma busca nas bases de dados Medline (PubMed) e
Scielo, procurando artigos, em inglês, português, espanhol e francês, que
tratassem de questões relativas à religiosidade, à espiritualidade e ao consumo
de drogas psicotrópicas, entre 1976 e 2006, tendo-se utilizado as seguintes
palavras-chave: "religião", "religiosidade",
"espiritualidade", "uso, abuso ou dependência de drogas" e
"drogas psicotrópicas". Além disso, também foram levantadas as teses
de doutorado brasileiras, indexadas pela Capes, que também refletissem estudos
sobre o tema.
As seções seguintes apresentam a revisão dos dados
já publicados na literatura e que formam o corpo do conhecimento teórico do
tema do presente trabalho. Por questões didáticas, os achados foram divididos
em dois grandes grupos: Religiosidade e "epidemiologia" do consumo de
drogas e Religiosidade e "tratamentos" para a recuperação dos
dependentes de drogas.
RELIGIOSIDADE E EPIDEMIOLOGIA DO CONSUMO DE DROGAS
Aspectos gerais
No que tange ao consumo das drogas psicotrópicas, a
religião vem sendo claramente identificada como um fator protetor ao uso de
drogas, tanto no Brasil quanto no exterior. Entre os estudos que se referem à
relação existente entre a religião e as drogas, um dos mais antigos foi
realizado na Irlanda e teve como amostra 458 estudantes universitários daquele
país. Notou-se maior consumo de álcool entre os estudantes com menor crença em
Deus e menor freqüência aos cultos religiosos (Parfrey, 1976).
Dentro desse item que trata dos aspectos gerais,
por nos parecer mais didático, optou-se pela apresentação cronológica dos
principais estudos científicos sobre o tema. Como será visto adiante, todos têm
característica quantitativa e utilizam meios estatísticos para avaliar
correlação entre a religiosidade e o consumo de drogas, sem, contudo, enfocar
os mecanismos estruturais do fenômeno.
Em um estudo realizado com 2.066 adolescentes
canadenses, Adlaf e Smart (1985) examinaram a relação entre o uso de drogas e
diversas formas de mensuração da religião, como a afiliação religiosa, a
religiosidade e a freqüência à igreja. A afiliação religiosa não diferiu entre
os usuários de drogas, quer eles fossem católicos, protestantes e sem religião.
Por outro lado, os índices de religiosidade e a freqüência à igreja diferiram
entre os usuários e os não-usuários de drogas de forma significativa. Aqueles
que pouco freqüentavam a igreja ou que, de alguma forma, não praticavam a sua
religião eram os mais propensos a ser usuários de álcool e de outras drogas.
No estudo de Lorch e Hughes (1985), realizado com
13.878 estudantes, a importância dada à religião foi o fator protetor
fundamental para o não consumo de drogas, pois, quanto maior era a importância
dada à religião, menor era o envolvimento com as drogas.
Cochran et al. (1988) estudaram a relação
entre a religiosidade, o uso de álcool e a percepção do uso irracional deste,
tendo para isso utilizado os dados obtidos no General Social Survey de
1972 e 1984, com 7.581 pessoas maiores de 18 anos. Os autores verificaram que
as pessoas sem religião eram mais propensas a utilizar o álcool e que os
batistas eram os menores consumidores desta substância. Posteriormente, Midanik
e Clark (1995), seguindo a mesma metodologia para os levantamentos dos anos de
1984 a 1990, corroboraram esses achados, apontando para a evidência de que as
pessoas com maior índice de religiosidade apresentam menos problemas relativos
ao consumo de álcool.
Hawks e Bahr (1992) sugeriram que a religiosidade,
expressa pela prática de uma religião, retarda o primeiro uso do álcool, também
influenciando a menor freqüência posterior do seu consumo. As suas observações
confirmaram que a freqüência a igrejas e sinagogas estaria inversamente
relacionada com o uso de álcool e de outras drogas. No mesmo ano, na Espanha,
Luna et al. (1992) verificaram, em uma investigação entre 955 estudantes
universitários, que aqueles que consideravam a religião algo importante nas
suas vidas eram os mesmos que relatavam menor consumo de álcool e outras
drogas, assim como consideravam perigoso o consumo dessas substâncias.
Koenig et al. (1994), ao examinarem a
relação entre o alcoolismo e as diversas atividades religiosas, constataram que
as pessoas que freqüentavam a igreja regularmente e eram engajadas em preces e
leituras da Bíblia apresentavam índices significativamente menores de
alcoolismo.
Em Trinidad e Tobago, Singh e Mustapha (1994), em
um estudo com 1.603 estudantes secundaristas, identificaram quatro variáveis
religiosas claramente relacionadas com menor envolvimento do consumo de drogas,
que foram as seguintes: aderir e participar de programas religiosos para jovens;
valorizar os ensinamentos religiosos; considerar importante crer em Deus e
considerar importante orar quando se está diante de alguma dificuldade.
No ano seguinte, na Alemanha, seguindo a idéia de
Luna et al. (1992), Cronin (1995), em um estudo com 216 estudantes,
verificou que o consumo de drogas foi significativamente maior nos do ensino
médio que davam pouca importância para a religião e para a espiritualidade.
Dois levantamentos, realizados entre estudantes
universitários nigerianos, apontaram para a constatação de que a ausência de
uma religião se relacionava a uso maior do álcool, do tabaco e da maconha (Ndom
e Adelakan, 1996). Dez anos depois, seguindo os mesmos padrões metodológicos,
esse fato também se verificou em um estudo realizado entre adolescentes que
viviam nos Estados Unidos (Sinha et al., 2006).
Em um estudo com 1.902 irmãs de famílias religiosas
ou não-religiosas, pôde-se constatar que a religiosidade da família foi um dos
fatores determinantes do ambiente doméstico saudável e não conflituoso, pois
diminuiu consideravelmente o risco do abuso de drogas por elas (Kendler et
al., 1997).
De acordo com o gênero, alguns estudos apontam para
uma diferença no que diz respeito à postura diante da religiosidade e do
consumo de drogas. Em um levantamento americano realizado entre 210 estudantes
universitários, notou-se que, especialmente nas mulheres, a crença religiosa
estava relacionada à cautela em relação ao consumo do álcool e das drogas,
assim como aos padrões de comportamento sexual. Já para os homens, a
religiosidade só foi identificada como protetora do consumo de outras drogas,
que não o álcool e o tabaco (Poulson et al., 1998). Na Escócia, essa
relação também foi verificada entre os estudantes universitários dos cursos das
áreas de saúde e educação, verificando-se que, apesar de tanto os homens como
as mulheres praticantes de uma religião consumirem menos drogas dos que os não
pertencentes a nenhum grupo religioso, eles sempre faziam um consumo mais
intenso do que elas, sendo eles também mais tolerantes em relação ao consumo de
drogas lícitas e ilícitas (Engs e Mullen, 1999).
A devoção pessoal, expressa essencialmente pelas
orações dirigidas a Deus, mostrou-se inversamente associada ao abuso e à
dependência das drogas psicotrópicas, com a exceção do tabaco, entre os
adolescentes entrevistados pelo Nacional Comorbidity Survey nos EUA
(Miller et al., 2000).
Sutherland e Shepherd (2001), comparando aspectos
sociais da vida dos usuários e dos não-usuários de drogas em Gales, sugeriram
que a falta de uma crença religiosa atuaria como um fator de risco para o
consumo de drogas, e a relação negativa entre a crença em Deus e o consumo de
drogas ilícitas se torna mais forte conforme a idade aumenta. Já para Hodge et
al. (2001), maior atividade religiosa, expressa pela prática de preceitos e
pela freqüência a uma igreja, aumentaria a possibilidade de os adolescentes
rurais americanos nunca experimentarem álcool.
No que diz respeito à educação religiosa, Miller et
al. (2001), estudando, em Nova York, os filhos dos consumidores de heroína
vinculados a programas de substituição desta pela metadona, afirmaram que as
crianças do grupo experimental com algum tipo de educação religiosa, em geral
oferecida pelos adultos não dependentes de drogas, tiveram menor propensão ao
envolvimento com drogas do que as que nunca se submeteram a uma formação
religiosa.
Também entre as crianças e os jovens caribenhos,
dos 10 aos 18 anos, aqueles que estavam envolvidos com algum grupo religioso,
freqüentando as atividades religiosas, apresentavam menos comportamentos de
risco, inclusive em relação ao consumo de álcool e de drogas, o que evidencia o
papel protetor da religiosidade do domínio público (participação em grupos
religiosos) (Blum et al., 2003). No entanto, para Nonnemaker et al.
(2003), parece que a religião se apresenta protetora do uso experimental de
drogas apenas entre os adolescentes que obtiveram pontuações elevadas nos
quesitos relativos ao domínio privado (prece individual) da sua religiosidade,
expresso pelo número de orações semanais e pela importância dada à religião. A
religiosidade privada parece ser a responsável por reduzir o impacto dos
eventos estressantes na vida, que é determinante para o início do consumo de
substâncias psicotrópicas (Wills et al., 2003).
Quando se buscou a existência da influência da
religiosidade no consumo de drogas, relacionada com a questão da raça, Wallace et
al. (2003) verificaram que, apesar de maior número de jovens negros
norte-americanos se declararem religiosos, a relação entre a religiosidade e a
abstinência do álcool e da maconha foi mais intensa entre os brancos. Tal
evidência já havia sido identificada em uma pesquisa baseada em dados de um
levantamento nacional, realizada neste mesmo país (Amey et al., 1996).
Também na Hungria, um estudo com 1.240 adolescentes
se evidenciou a relação inversa entre o consumo de tabaco, de álcool e de
maconha, e a prática religiosa (Piko e Fitzpatrick, 2004).
Nos sete países da América Central, também foi
possível identificar a religiosidade como um fator protetor. Um estudo
epidemiológico com cerca de 13 mil estudantes dessa região identificou que a
prática religiosa, expressa pela freqüência à Igreja Católica ou Protestante,
estava inversamente relacionada com os consumos prematuros do cigarro e da
maconha, além de também diminuir as chances de exposição ao álcool (Chen et
al., 2004).
Em um estudo aleatório com os pacientes que deram
entrada em três pronto-socorros na cidade de Los Angeles, nos Estados Unidos,
verificou-se que a participação regular em uma igreja teve significativo
impacto positivo diante do consumo de álcool nas seis horas anteriores à
entrada na sala de emergência (Bazargan et al., 2004).
No intuito de compreender o mecanismo pelo qual a
religiosidade poderia ser considerada protetora do consumo de drogas, Stylianou
(2004), por meio de questionários enviados por e-mail, investigou
padrões de consumo e conceitos de religiosidade em 276 estudantes
universitários do Chipre. Os resultados sustentaram a hipótese de que a
religiosidade controla indiretamente as atitudes perante o consumo de drogas
pela percepção da imoralidade que o ato representa em si próprio.
No ano de 2006, dois estudos que trataram do
consumo de drogas, especificamente entre mulheres de risco, apontaram para o
papel protetor da religiosidade como sendo algo que as influenciou, levando-as
a menor consumo de drogas (Klein et al., 2006), assim como favoreceu sua
diminuição quando este já era praticado (Brown, 2006).
No Brasil, não há muitos estudos nesta área, no
entanto, recentemente, foi publicado um estudo qualitativo que corrobora os
achados internacionais quantitativos, evidenciando que a maior diferença entre
os adolescentes usuários e os não-usuários de drogas psicotrópicas, de classe
social baixa, era a sua religiosidade e a da sua família. Nesse estudo, os
autores observaram que 81% dos não-usuários praticavam a religião professada
por vontade própria e admiração, mas apenas 13% dos usuários faziam o mesmo.
Nesse segundo grupo, porém, a prática religiosa estava diretamente relacionada
à busca da reabilitação diante do consumo de drogas, mas essa só começou após o
início do consumo abusivo destas (Sanchez et al., 2004).
Dalgalarrondo et al. (2004), ao avaliarem
2.287 estudantes de escolas públicas e particulares de Campinas (SP),
verificaram que o uso intenso de pelo menos uma droga (álcool, tabaco,
medicamentos, maconha, solventes, cocaína ou êxtase) foi maior entre os que não
tiveram educação religiosa na infância.
Por fim, no ano de 2006, os pesquisadores da
Universidade de São Paulo, em um estudo com 926 estudantes universitários
paulistanos, publicaram seus achados epidemiológicos afirmando que, aqueles que
possuíam uma renda familiar alta e não professavam alguma religião, eram os que
correriam maior risco de consumir drogas (Silva et al., 2006). Além
disso, esse mesmo estudo detectou a ausência de bebedores excessivos entre os
espíritas e os protestantes praticantes.
DIFERENÇAS EPIDEMIOLÓGICAS DE ACORDO COM A RELIGIÃO
PROFESSADA
É possível notar diferenças significativas na
postura perante o consumo de drogas, em especial ao álcool, de acordo com a
religião professada. Nusbaumer (1981), analisando os dados obtidos pelo National
Opinion Research Center, observou que algumas vertentes protestantes
históricas, como a batista e a metodista, tinham maior tendência à abstinência
alcoólica que os católicos, os luteranos, os presbiterianos e os episcopais.
Esse dado foi muito semelhante ao encontrado posteriormente por Engs et al.
(1990), que verificaram que os católicos e os protestantes liberais
apresentavam mais problemas relacionados com o consumo de álcool do que os
protestantes conservadores (batista e metodistas).
Schlegel e Sanborn (1979) e Lorch e Hughes (1985)
observaram entre os estudantes primários e secundários no Canadá e nos Estados
Unidos que aqueles que pertenciam e participavam de uma Igreja Protestante
Fundamentalista (pentecostal) tinham índices muito menores de envolvimento com
álcool e outras drogas.
Carlucci et al. (1993) chegaram a conclusões
similares ao verificar que os protestantes e os judeus aceitam com mais
facilidade a abstinência de álcool do que os católicos.
No que diz respeito ao tabaco, Ahmed et al.
(1994) verificaram que as mulheres adeptas de religiões evangélicas
pentecostais fumavam 3,6 vezes menos que as das outras religiões.
Segundo Francis (1997), que avaliou 11.173
estudantes britânicos, entre os 13 e os 15 anos de idade, os adeptos das
dominações protestantes, tanto tradicionais como pentecostais, mostraram-se
mais propensos a rejeitar uma oferta de consumo de qualquer droga do que os
católicos ou os indivíduos sem religião.
Um outro estudo, com 263 estudantes
norte-americanos, mostrou que aqueles que não tinham alguma afiliação religiosa
relataram maior envolvimento com o álcool (em número de doses, dias de consumo
por semana e episódios de intoxicação). Nesse mesmo estudo, notou-se que os
protestantes ainda tiveram padrão de consumo de álcool mais controlado e menos
perigoso do que o dos católicos (Patock-Peckham et al., 1998).
Em linhas gerais, os diversos estudos colocam os
católicos como o grupo religioso com o maior índice de consumo de álcool, com
taxas muito parecidas às das pessoas sem religião (Perkins, 1985; Amoateng e
Bahr, 1986; Cochran et al., 1988). Esses dados podem estar deturpados
pela forma como o entrevistado avalia a religião que professa. No Brasil,
apesar de a religião oficial ser a católica, o indivíduo não é obrigado a
realizar as práticas católicas, no entanto, autodenomina-se católico, mesmo
quando não pertence a nenhum grupo religioso ou é simpatizante de outros.
Cada religião tem a sua opinião mais ou menos
permissiva quanto ao consumo de drogas, embora diferindo no que diz respeito à
questão do álcool e do tabaco. Por esse motivo, o papel preventivo da religião
diante do consumo de drogas está mais associado às religiões que, como as
protestantes, oferecem uma visão menos permissiva dessa questão (Gorsuch,
1995).
RELIGIOSIDADE E TRATAMENTOS PARA A RECUPERAÇÃO DE
DEPENDENTES DE DROGAS
Tratamentos religiosos
Pouco está descrito a respeito dos
"tratamentos" religiosos de reabilitação realizados nas Igrejas,
apesar de, no Brasil, haver uma observação leiga e midiática apontando para os
aspectos positivos desse tipo de intervenção.
Quando se consideram os temas relativos à
espiritualidade e à religiosidade no tratamento da dependência de drogas,
nota-se nitidamente a preferência dos pesquisadores em estudar o papel dos
grupos com base espiritual, mas não religiosa, como os alcoólicos anônimos
(AA).
A maioria dos estudos baseados nos programas de
tratamento realizados por Igrejas fundamenta-se na corrente protestante, visto
que ela foi a pioneira nessa área de atuação logo após a Segunda Guerra
Mundial, implementando programas de recuperação nas igrejas evangélicas de
Chicago e New York (Brown, 1973). Desde a década de 1960, no entanto, a igreja
católica também se mostrou uma fornecedora de "tratamento" e
reabilitação da dependência de drogas, embora a maior parte dos programas
religiosos para o referido tratamento estude de forma pouco criteriosa a
avaliação das suas metodologia e eficácia (Gorsuch, 1995). Nas populações mais
pobres, em particular nas quais a religião influencia as questões sociais, como
é o caso de Porto Rico, os tratamentos religiosos oferecidos pelas igrejas
evangélicas, com base na fé e sem a intervenção médica, têm ganhado espaço e
aumentado em número de igrejas e adeptos (Hansen, 2004).
Independente da religião professada, observa-se um
forte impacto da religiosidade e da espiritualidade no tratamento da
dependência de drogas, sugerindo que o vínculo religioso facilita a recuperação
e diminui os índices de recaída dos pacientes submetidos aos diversos tipos de
tratamento (Pullen et al., 1999). Dentro de um grupo dos narcóticos
anônimos (NA), observou-se que um melhor índice de recuperação estava associado
a uma prática religiosa formal diária, evidenciando que aqueles que, além de
freqüentarem as reuniões do grupo de mútua ajuda, tinham um vínculo com alguma
religião, apresentavam mais sucesso na manutenção da sua abstinência (Day et
al., 2003). A uma conclusão semelhante chegaram Turner et al. (1999)
que, no seu estudo com uma população exclusivamente de mulheres em recuperação,
enfatizaram a importância da associação de um programa de 12 passos a uma
prática religiosa regular.
Alguns autores chegam a afirmar que a simples ida à
Igreja contribui para a diminuição do consumo de drogas como a cocaína, sem
necessariamente nesses locais existir um tratamento formal. No entanto, quando
associados aos grupos dos 12 passos, a eficácia parece ser maior (Richard et
al., 2000).
Já em um programa de substituição de heroína pela
metadona, realizado pelo governo norte-americano, verificou-se que os pacientes
que apresentavam maiores índices de espiritualidade e que tinham o suporte de
uma entidade religiosa (Igreja) foram os que apresentaram o maior tempo de
abstinência em relação às drogas ilícitas. Esse fato sugeriu que a
religiosidade fosse preditora da abstinência nos grupos de dependentes de
heroína (Avants et al., 2001). Também entre os pacientes em tratamentos
de substituição pela metadona, em um estudo exploratório qualitativo, foi
constatada a importância dada por essa população às questões espirituais. O
tema emergente nas entrevistas foi o senso de força e a proteção que percebem
na prática religiosa, o que os faz valorizar um possível tratamento com base na
sua própria espiritualidade (Arnold et al., 2002).
Utilizando uma escala de transcendência espiritual,
validada para a população norte-americana, com a finalidade de medir o
envolvimento pessoal com questões sagradas e divinas, Piedmont (2004) observou
que as maiores pontuações dentro de conexões com a divindade, por exemplo na
forma de preces, estavam associadas ao maior sucesso na recuperação dos
usuários de droga em tratamento médico convencional.
Apesar de pouco comum, alguns autores arriscam
teorias que sustentam um possível mecanismo do papel da religiosidade na
recuperação do usuário de drogas e no controle da recaída, sugerindo que o
aumento do otimismo, a melhor percepção do suporte social, a maior resiliência
ao estresse e a diminuição dos níveis de ansiedade seriam responsáveis pelo
sucesso desses programas (Pardini et al., 2000). Já para Barrett et
al. (1988) esse mecanismo estaria muito mais relacionado às questões
sociais, como a ressocialização do jovem pela reestruturação da sua rede de
amigos, colocando-o em um ambiente mais saudável e sem a oferta de drogas.
Segundo Carter (1998), a chave de uma recuperação
de longo tempo, ou seja, aquela com mais do que cinco anos de abstinência, está
diretamente relacionada ao desenvolvimento da espiritualidade do paciente, e,
das pessoas que freqüentam os grupos de AA, 34% conseguem atingir a abstinência
de longo prazo. No entanto, o autor sugere que sejam feitas pesquisas
qualitativas que possam desvendar o papel real dessa espiritualidade na
recuperação da dependência de drogas.
Paralelo a isso, Pardini et al. (2000)
ressaltaram que, enquanto há uma quantidade mínima de pesquisas científicas
analisando o real impacto e o mecanismo da religiosidade no tratamento dos
dependentes de drogas, muitos investigadores teorizam tais fatores baseados nas
próprias crenças e nos resultados quantitativos indiretos, o que sugere a
necessidade de pesquisas qualitativas para a compreensão do fenômeno.
Dentro da linha qualitativa, um recente estudo
brasileiro tentou esclarecer os mecanismos da intervenção religiosa proposto
pelas três maiores religiões brasileiras: o catolicismo, o protestantismo e o
espiritismo. Foram entrevistados em profundidade 90 indivíduos que haviam se submetido
a intervenções religiosas (não-médicas) para curar a sua dependência de drogas.
As conclusões apontaram diferenças no suporte ao dependente de drogas oferecido
por cada grupo. Os evangélicos foram os que mais utilizaram o recurso religioso
como forma exclusiva de tratamento, apresentando forte repulsa ao papel do
médico e a qualquer tipo de tratamento farmacológico. Também foram eles os que
descreveram a maior intensidade na crise vivida, relacionada especialmente às
drogas ilícitas. Os espíritas foram os que buscaram mais apoio terapêutico em
relação à dependência de drogas lícitas em simultâneo com um tratamento
convencional, o qual ocorria e podia ser realizado devido ao maior poder
aquisitivo desse grupo. O que há de comum em todos os tratamentos é a
importância dada à oração, que é a conversa com Deus, como o método para
controlar a fissura pela droga, que atua como forte ansiolítico. Para os
evangélicos e os católicos, a confissão e o perdão, respectivamente, pela
conversão (fé) ou pelas penitências, exercem forte apelo à reestruturação da
vida e ao aumento da auto-estima. O que manteve os participantes deste estudo
na instituição religiosa e na abstinência do consumo de drogas foi a admiração
pelo bom acolhimento recebido, a pressão positiva do grupo e a oferta de uma
reestruturação da vida com o apoio incondicional dos líderes religiosos. Além
disso, a religião lhes oferece condições de refazer os seus vínculos de
amizade, por meio da realização de diversas atividades ocupacionais
voluntárias, facilitando assim o seu afastamento da droga e dos seus
companheiros vinculados a ela (Sanchez, 2006).
Perante a falta de informações, ainda há muito a
estudar no campo dos mecanismos da atuação da religiosidade no tratamento da
dependência de drogas, o que torna esse um campo frutífero para futuros
estudos.
Vale ainda destacar que, apesar de as religiões
cristãs serem adeptas da abstinência completa de todas as drogas psicotrópicas,
no Brasil, as religiões sincréticas como o Santo Daime e a União do Vegetal vêm
ganhando terreno na prestação de serviços de saúde pela utilização de uma droga
psicotrópica. Elas não trabalham apenas com a fé, mas associam a esta a
ingestão do chá alucinógeno de ayahuasca (Banisteriopsis caapi e Psychotria
viridis) a fim de combater os mais variados males orgânicos e emocionais,
entre os quais está a dependência de drogas (Doering-Silveira et al.,
2005; Barbosa et al. 2005).
Segundo Doering-Silveira et al. (2005), a
evidência de que diversos jovens deixaram de consumir cocaína e crack
após aderirem à União do Vegetal sugere que o chá tenha utilidade terapêutica
no tratamento das desordens de dependência, embora os autores sugiram que sejam
realizados estudos longitudinais que permitam melhor avaliação de tal
suposição.
Tratamentos nos grupos de mútua-ajuda
Mundialmente conhecido, o grupo dos alcoólicos
anônimos (AA) tem forte influência da espiritualidade na sua estrutura
essencial. Apesar de ele não ser um grupo formalmente "religioso", a
sua estrutura é baseada na tradição protestante americana (Dumont, 1974) e,
curiosamente, tem sido modelo da conduta terapêutica em muitos grupos
religiosos de mútua-ajuda. Convém destacar que, apesar de esses se
auto-intitularem grupos de auto-ajuda, o seu processo básico de funcionamento
indica forte estrutura na ajuda mútua entre os seus membros. O seu modo de
atuar, muito mais do que um trabalho solitário de reconstrução de valores,
baseia-se no apoio incondicional dos parceiros que se encontram na mesma
condição emocional, o que permite que os membros se socorram mutuamente
(Sanchez-Vidal, 1991; Chappel e Dupont, 1999).
Os AA, grupo fundado nos Estados Unidos em 1935 por
Bill Wilson, definiram um código moral de 12 passos, cuja origem se baseou na
intensa experiência espiritual vivida pelo seu fundador, após este ter passado
por inúmeras tentativas infrutíferas de desintoxicação alcoólica pelos meios
médicos tradicionais. A partir desse episódio redentor, Bill deu início à
estruturação de um grupo entusiasta, quase religioso, para o apoio dos
alcoólicos que estivessem interessados na sua recuperação (AA, 2001; Galanter,
2005).
Na década de 1950, com base nos mesmos princípios
dos AA, surgiu na Califórnia o primeiro grupo dos narcóticos anônimos (NA), o
qual visava atender não só os usuários dependentes do álcool, mas também das
outras drogas. Assim, nos 12 passos, todas as citações de "álcool"
foram substituídas por "drogas", mas manteve-se a essência dos AA,
sendo a estrutura das reuniões exatamente a mesma (NA, 1997).
A abordagem principal dos AA e dos NA na
recuperação do dependente de drogas assenta na crença do valor terapêutico da
ajuda de um dependente ao outro. As reuniões são baseadas nos depoimentos que
cada membro dá, em que relata as suas experiências e a sua vivência para sua
recuperação da dependência do álcool. Uma das premissas básicas das reuniões é
o anonimato dos participantes, não havendo registros formais dos freqüentadores
(AA, 2001).
Seis dos 12 passos propostos para a recuperação do
dependente estão estruturados em um alicerce espiritual, em que, em um contexto
ecumênico, se apela para a relação do homem diante de Deus. Os passos 1, 4, 8,
9, 10 e 12 apontam para a responsabilidade do adepto perante seus atos, mas
facilitam o enfretamento de tais situações, pois permitem que o usuário
transfira a responsabilidade da sua cura para as mãos de Deus, como mostram os
passos 2, 3, 5, 6, 7 e 11 (Harris et al., 2003).
Vale destacar que esses grupos não são organizações
religiosas e não se apóiam em nenhuma crença em particular, pelo que permitem
que cada um dos membros siga livremente a sua religião. Eles também admitem que
uma atitude de indiferença e de intolerância perante os princípios espirituais
impede o sucesso na utilização desses passos. No entanto, pela afiliação
religiosa do seu fundador, nota-se forte característica dos conceitos
protestantes nos seus passos. Exemplos disso são o reconhecimento da
pecaminosidade, o modelo confessional proposto (confessar-se ao grupo), e a
cultura da igualdade e a condenação das hierarquias (Dumont, 1974). Para os
membros dos AA, a espiritualidade é a base da sua sobriedade, e esta só pode
ser atingida em parceria com Deus (Smith, 1994; Watkins, 1997).
Há hoje extensa literatura científica valorizando
os efeitos benéficos terapêuticos trazidos por esse grupo, o qual já possui no
mundo mais de 2 milhões de membros (Galanter, 2005). Notadamente uma terapia
antialcoólica médica associada à freqüência às reuniões do grupo demonstra-se
mais eficaz que qualquer uma delas isolada, provavelmente por causa da adesão
de conceitos espirituais (Galanter, 2006). Além disso, parece ser a forma mais
eficaz de manter a abstinência na fase pós-internação (Gossop et al.,
2003), a despeito de todo o preconceito médico quanto a esse modelo (Fazzio et
al., 2003).
O modelo dos AA foi copiado pelo projeto MATCH norte-americano,
a fim de que este pudesse levar os seus conceitos ao setting
terapêutico, desenvolvendo a facilitação dos 12 passos feita pelos
profissionais da saúde especializados no tratamento de dependência de drogas,
tendo esta se demonstrado mais efetiva do que as técnicas motivacionais e
cognitivas, quando avaliada a abstinência no longo prazo (Project Match, 1998).
No entanto, segundo recente revisão sistemática publicada por Ferri et al.
(2006), as evidências apresentadas por tais estudos não são suficientes para
que se certifique, experimentalmente, a eficácia desse tipo de intervenção. De
acordo com os autores, é necessário que sejam realizados mais estudos
quantitativos que avaliem a eficácia de tal método terapêutico.
CONCLUSÃO
Diante dos resultados observados nos estudos
mencionados neste artigo, nota-se que, em especial, a freqüência constante a
uma igreja, a prática dos conceitos propostos por uma religião e a importância
dada à religião e à educação religiosa na infância são possíveis fatores
protetores do consumo de drogas. Verifica-se também uma possível influência
positiva da religiosidade para a recuperação dos dependentes de drogas. Nesse
quesito, a maior parte dos estudos foca tratamentos baseados nos 12 passos dos
AA, estando estes alicerçados na espiritualidade, mas não pautados em uma
religiosidade específica. No que diz respeito aos "tratamentos
religiosos" para a dependência de drogas, poucos estudos científicos têm
avaliado esse tipo de intervenção, mesmo sabendo-se que, no Brasil, a cada dia
proliferam as igrejas protestantes que se oferecem para curar a dependência de
drogas dos seus novos adeptos. A quase totalidade dos trabalhos científicos
indexados tem caráter quantitativo e transversal, não enfocando os mecanismos
ou as variáveis de causalidade. Dessa maneira, um amplo campo de pesquisa
mantém-se aberto nessa área de conhecimento, exigindo mais estudos que permitam
a compreensão dos processos da ação da fé religiosa na prevenção primária do
consumo de drogas e, especialmente, no tratamento da dependência.
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