BLOG ESPIRITUALIDADE E RELIGIOSIDADE. AUTOR: ÁLAZE GABRIEL GIFTED.
Disponível em http://espiritualidade-e-religiosidade.blogspot.com.br
Autoria:
Ênio Brito Pinto
RESUMO
A partir da constatação de que o termo
“espiritualidade” ainda não tem uma conotação psicológica tão clara quanto
seria desejável, o texto debate, com fundamentação na Psicologia da
Personalidade, na Psicologia do Desenvolvimento e na Psicologia da Religião, o
que se pode entender por ‘espiritualidade’ em Psicologia e como esse conceito
se diferencia do conceito de “religiosidade”. Fazem-se algumas considerações
sobre como essa conceituação pode auxiliar o psicoterapeuta em seu trabalho
clínico.
Quero começar detalhando o caminho que trilharei
neste texto: entendo que o termo ‘espiritualidade’ ainda não tem uma conotação
tão clara em Psicologia como seria desejável, o que, me parece, ser uma
deficiência que precisa ser corrigida. Debater o que se pode entender por
‘espiritualidade’ em Psicologia é, assim, o foco desse meu trabalho. Escolhido o
foco, há que se definir uma estratégia para abordá-lo. Assim, passarei por três
importantes áreas da Psicologia para iluminar da melhor forma possível o
enfoque adotado: falarei da Psicologia da Personalidade, da Psicologia do
Desenvolvimento e da Psicologia da Religião, para finalizar fazendo algumas
poucas considerações sobre como tudo o que levantarei aqui pode auxiliar o
psicoterapeuta em seu trabalho clínico.
Há, na Psicologia, alguns termos que são
razoavelmente inequívocos, quer dizer, há alguns termos que todo psicólogo,
independentemente de sua abordagem, é capaz de definir com uma boa dose de
precisão. Insight, condicionamento, transferência e contratransferência, complexo
de Édipo, persona e sombra, objeto transicional, intencionalidade,
autoatualização, hierarquia de necessidades, dentre outros, figuram nesse rol.
Há outros termos que não são assim tão consensuais: self, inconsciente,
liberdade e espiritualidade são alguns que compõem essa segunda lista. Quero
ver se daqui a pouco, ao fim da leitura, poderemos fazer o termo
‘espiritualidade’ mudar de lista. Para isso, vou buscar definir da maneira mais
clara o que a espiritualidade é e o que ela não é do ponto de vista
psicológico, além de diferenciá-la da religiosidade, pois não é rara, no meio
dos psicólogos, e mesmo no meio dos religiosos, uma certa confusão entre uma e
outra.
Essa certa confusão que há entre os psicólogos
quanto ao tema da espiritualidade tem uma série de motivos, dentre os quais se
destacam especialmente dois: primeiro, o pouco espaço que as faculdades de
Psicologia dedicam ao tema da religião e até à Psicologia da Religião, muito
mais desenvolvida na Europa e nos EUA do que no Brasil; segundo, como bem
aponta Marília Ancona-Lopez, há enorme dificuldade para o psicólogo inserir as
suas experiências espirituais e religiosas em um universo acadêmico e profissional
que as aceite, integre e compartilhe, o que acaba por gerar, nos psicólogos,
uma dificuldade para desenvolver uma ação psicológica congruente consigo mesmo
no que diz respeito ao tema da espiritualidade e da religião. (2005:153)
Espiritualidade e religiosidade são temas próximos,
mas indicam fenômenos diferentes. Vou continuar essa nossa conversa explorando
a diferenciação entre espiritualidade e religiosidade. E me apoiarei, a
princípio, na Psicologia da Personalidade para tentar esclarecer as diferenças
entre esses dois conceitos, tomando todo o cuidado para evitar uma postura
reducionista, ou seja, eu sei que trago um ponto de vista, o qual não é o único
quanto a este tema. Dizendo de outro modo: o que trago hoje é uma contribuição
que tem como objetivo tentar uma melhor clareza no campo da Psicologia quando
se fala desses temas tão importantes como a espiritualidade e a religiosidade.
Então, vamos à Psicologia da Personalidade.
Pensando em termos de personalidade, a espiritualidade é estrutura e a
religiosidade é processo. Vou explicar. O campo do estudo da personalidade
trata, fundamentalmente: 1) da pessoa como um todo e 2) das diferenças individuais.
Com isso, o que se procura é compreender o comportamento humano através da maneira
como cada indivíduo funciona na interação dos diversos aspectos que compõem seu
todo, seu jeito complexo de ser. Gilles Delisle, gestaltista canadense,
caracteriza a personalidade como um específico e relativamente estável modo de
organizar os componentes cognitivos, emotivos e comportamentais da própria
experiência. O significado (cognitivo) que uma pessoa atribui aos eventos (de
comportamento) e os sentimentos (emocional) que acompanham esses eventos
permanecem relativamente estáveis ao longo do tempo e proporcionam um senso
individual de identidade. Personalidade é esse senso de identidade e o impacto
que ele provoca nas outras pessoas. (1999:19)
Grosso modo, podemos compreender o ser humano como
um ser animobiopsicocultural, ou seja,
um ente composto por três níveis articulados, o corporal, o psíquico e o
espiritual, um ente que vive em uma cultura, a qual é configurada social,
geográfica e historicamente, ou seja, a cultura compõe um campo que configura o
ser humano, embora não o determine.
Com isso, estou dizendo que há alguns dados que são
estruturais na personalidade de cada pessoa, dados esses que são entrelaçados
por uma certa intencionalidade na composição do sujeito humano. Fazem parte da
estrutura da personalidade humana, dentre outros aspectos, a sexualidade, as
disposições genéticas, a possibilidade da emoção, do sentimento e do senso de
identidade, a possibilidade da reflexão profunda sobre si, sobre a existência e
sobre o mundo, a possibilidade da hierarquização dos valores. Nesse modo de pensar,
a corporeidade está especialmente representada pelas disposições genéticas e
pela sexualidade, compondo, com a intencionalidade, o corpo vivido; o psiquismo
está especialmente presente na possibilidade de se lidar com as emoções e os
sentimentos, compondo a apropriação da realidade e o senso de identidade; a
espiritualidade está especialmente presente na possibilidade da hierarquização
dos valores, nas decisões, na reflexão profunda sobre a existência e,
fundamentalmente, na possibilidade – eu diria até na necessidade – que tem o
ser humano de tecer um sentido para a sua vida, de ter um bom motivo para
continuar vivendo. Por isso é que eu afirmei, há pouco, que a espiritualidade
tem lugar na estrutura da personalidade humana.
Ao estudar a Psicologia da Personalidade,
aprendemos que há, na personalidade, estabilidade, persistência, constância. Há
também mudança, plasticidade, alterações ao longo do tempo e a partir das
experiências. Também se pode depreender que a personalidade é um sistema, ou
seja, é um todo complexo e dinâmico. Um sistema que pode ser percebido e
estudado principalmente através do comportamento.
Esse sistema/personalidade tem, essencialmente,
duas partes: estrutura e processo. Dizendo melhor ainda: esse
sistema/personalidade se caracteriza por ser um complexo relacionamento entre
estrutura e processo. A estrutura da personalidade é o que é constante. São os
padrões reincidentes, ou, no dizer de Messick, são componentes da organização
da personalidade relativamente estáveis, usados para explicar as semelhanças
reincidentes e consistências do comportamento ao longo do tempo e através das
situações. (apud PERVIN 1978:555)
É a estrutura que possibilita certa previsibilidade
na vida de cada pessoa e que possibilita também o autoconhecimento. Em
constante diálogo com a estrutura está o processo, o outro componente do sistema/personalidade.
Processo é o que se inova e se renova, é o momentâneo ou circunstancial. É o fluido.
O processo traz a possibilidade da mudança, da surpresa, da inovação e pode
provocar, ao longo do tempo, modificações em aspectos da estrutura ou na maneira
de expressão de aspectos da estrutura da personalidade.
Estrutura e processo são igualmente importantes no
sistema/personalidade e uma pessoa será, do ponto de vista psicológico, tão
mais saudável quanto melhor for o diálogo entre esses dois fundamentos de sua
personalidade. Esse diálogo permitirá que essa pessoa possa se modificar
constantemente ao longo da existência, permanecendo sempre a mesma pessoa. Se
pensarmos no famoso aforismo de Sócrates, o “conhece-te a ti mesmo”, veremos
que, para ele, a estrutura é o ponto mais importante; se pensarmos na resposta
do Zen a Sócrates, “não tu mesmo”, veremos que aí a ênfase está colocada no
processo.
Do ponto de vista da Psicologia da Personalidade,
somos estrutura e processo, sempre novos e potencialmente modificáveis, sempre
os mesmos, embora sempre diferentes, ou seja, se o ideal é um bom padrão de autoconhecimento,
igualmente ideal é que a pessoa não perca a consciência de que nunca está
pronta, de que a vida traz contínua possibilidade de renovação e de mudança.
Como já disse, no meu modo de ver, espiritualidade
tem relação com a estrutura da personalidade, ao passo que religiosidade tem
relação com processo. Assim, não se deve identificar puramente religiosidade e
espiritualidade porque pode haver experiências de profundo sentido espiritual
que não têm qualquer conotação religiosa. Assim, se a espiritualidade é
inerente ao ser humano, a religiosidade não o é, uma vez que se há pessoas
“arreligiosas”, não é possível uma pessoa não-espiritual. Se a espiritualidade
é parte integrante da personalidade, a religiosidade é parte acessória, embora
importante para a maioria das pessoas, especialmente, mas não unicamente, por
ser precioso meio de inserção comunitária e cultural.
De todo modo, a espiritualidade não tem
necessariamente relação com a religião. Para Giovanetti, o termo
“religiosidade” “implica a relação do ser humano com um ser transcendente”, ao
passo que o termo “espiritualidade” “não implica nenhuma ligação com uma
realidade superior” (2005:136). Para esse autor, a espiritualidade significa a possibilidade
de uma pessoa mergulhar em si mesma. Ele completa: o termo ‘espiritualidade’
designa toda vivência que pode produzir mudança profunda no interior do homem e
o leva à integração pessoal e à integração com outros homens” (2005:137).
A espiritualidade tem relação com valores e significados:
“o espírito nos permite fazer a experiência da profundidade, da captação do
simbólico, de mostrar que o que move a vida é um sentido, pois só o espírito é
capaz de descobrir um sentido para a existência” (2005:138). Farris acrescenta
outra variável importante na definição do que seria a espiritualidade: “a espiritualidade
é a construção, ou descoberta de significado no meio de relacionamentos, ou interações
entre a pessoa, o outro e o mundo.” (2005:165)
Para Valle, a espiritualidade não se opõe ao
material, corpóreo, mundano; não rejeita ou nega a natureza; não tem nada a ver
com a fuga do mundo; está encarnada na vida de cada pessoa e sua época; “expressa
o sentido profundo do que se é e se vive de fato”; precisa de silêncio
reflexivo e de contemplação; “assume o corpo e permite que o homem ultrapasse o
nível biológico e emocional de suas vivências, mesmo das mais elevadas e
sublimes” (2005:102).
Embora a espiritualidade seja característica de
todo ser humano, ela pode ser cultivada ou não. Uma das maneiras, mas, nem de
longe a única maneira através da qual a espiritualidade pode ser cultivada, é
através da religião. Nesse sentido, podemos dizer que a religião é posterior à
espiritualidade e uma manifestação dela. Embora seja difícil a delimitação
precisa do que seja religião, há alguns pontos que são bastante presentes: a
religião é um sistema de orientação e um objeto de devoção; os símbolos
religiosos evocam sentimentos de reverência e de admiração, além de estarem, em
geral, associados a um ritual; na religião, encontramos também sentimentos,
atos e experiências humanas em relação ao que se considera sagrado.
No grande espectro de definições que podem ser
levantadas para se entender o que é religião, encontrar-se-ão alguns elementos
comuns, como a presença de mitos (especialmente mitos de origem e de fim), de
ritos, de símbolos, da cultura e da congregação social de pessoas, além da associação
que a religião pode ter com a espiritualidade, sem esquecer das normas morais sobre
como lidar com a vida, com o mundo e com as pessoas.
Originária da religião, a religiosidade pode ser
entendida como uma experiência pessoal e única da religião, ou seja, “a face
subjetiva da religião”, como afirma Valle (1998:260). A religiosidade pode ser
uma maneira da espiritualidade se manifestar, mas não é a única maneira, ou
seja, do mesmo modo que há pessoas de intensa religiosidade e pouca espiritualidade,
há pessoas de nenhuma religiosidade, como um ateu ou um agnóstico, por exemplo,
que podem manifestar uma intensa espiritualidade. Em outros termos: a religiosidade
implica uma referência ao transcendente, ao passo que a espiritualidade implica
uma referência ao sentido. Elas podem se encontrar, mas não são a mesma coisa: como
já afirmei, existe a possibilidade de que alguém viva uma espiritualidade
arreligiosa, isto é, uma espiritualidade que não se liga a nenhuma crença
religiosa (GIOVANETTI 2004: 11).
Quando se dá o encontro entre a espiritualidade e a
religiosidade, o ser humano se vê diante de indagação sobre o sentido último da
existência. A espiritualidade, por si só, busca o sentido para a existência na
existência, não necessariamente o sentido último, preocupação maior da
religiosidade. Se a espiritualidade me faz buscar o sentido para a minha vida,
no encontro com a religiosidade esta busca abarca também o além da vida, o último.
O fato desse encontro se dar não caracteriza
necessariamente uma experiência de crescimento. A religiosidade tanto pode ser
uma fonte de força para as pessoas como pode, também, ser um refúgio para a
fraqueza, sendo que nenhuma dessas duas possibilidades é boa ou ruim por si
mesma. Como o ser humano tem capacidade tanto para o bem quanto para o mal, a
religiosidade pode, por um lado, corroborar a dignidade pessoal e o senso de valor,
promover o desenvolvimento da consciência ética e da responsabilidade pessoal e
comunitária, ou, por outro lado, a religiosidade pode diminuir a percepção
pessoal de liberdade, pode gerar uma crença de que não seja tão necessário o
cuidado pessoal, e pode facilitar a evitação da ansiedade que geralmente
acompanha o enfrentamento autêntico das possibilidades humanas.
Com isso quero dizer que a relação e o diálogo
entre a espiritualidade e a religiosidade não é necessariamente harmonioso: a
religiosidade pode ser consoante com a espiritualidade e, assim, constituir
possibilidade de busca de sentido e de aprofundamento em si e no mundo, mas a
religiosidade pode ser também fonte de alienação, de fuga do espiritual, de
superficialidade existencial. Dependendo da maneira como é vivida, a
religiosidade pode encobrir a espiritualidade, pode até sufocá-la, como é o caso
dos idólatras, dos fanáticos religiosos, das pessoas supostamente ingênuas que não
conseguem sequer criticar sua religião, assim como é o caso das pessoas que não
participam comunitária ou ecologicamente do mundo.
Agora, para aprofundarmos um pouco melhor nossa
compreensão dessa relação entre a espiritualidade e a religiosidade, vamos
pedir ajuda à Psicologia do Desenvolvimento. Só para lembrar: o estudo da
Psicologia do Desenvolvimento tem como foco o desenvolvimento humano em toda a
sua vida, com maior atenção para os aspectos físico-motor, intelectual,
afetivo-emocional e social (BOCK 1994: 80). Nesse estudo, considera-se toda a
personalidade da pessoa, ou seja, seus aspectos corporais, psíquicos,
espirituais e culturais, entendendo que a pessoa tende a evoluir de um nível
menos complexo para níveis progressivamente mais complexos de organização. A
noção de autoatualização, tão cara para os gestalt-terapeutas, é levada em
conta pela Psicologia do desenvolvimento. (FITZGERALD e STROMMEN 1975: 13)
Nesse trajeto evolutivo que caracteriza o
desenvolvimento humano, também a espiritualidade e a religiosidade podem
evoluir, de modo que não é estranho podermos falar em uma espiritualidade e em
uma religiosidade imaturas ou maduras. Para tanto, é preciso que a gente se
lembre de que o amadurecimento não se dá pela simples passagem pelo tempo, mas
pela forma como se passa pelo tempo. Passar pelo tempo é inevitável, amadurecer
nesse período é possibilidade, não decorrência natural. Como lembra Valle não
basta a “maturação” (mais ligada aos condicionamentos psicofisiológicos) para
se ter o “amadurecimento” que só se explica no plano do propriamente humano e
tem necessariamente a ver com a criatividade, a arte, a estética e – de maneira
extremamente complexa – com a espiritualidade. (2005:107)
Também não é por outro motivo que Frankl afirma que
se o físico é dado pela hereditariedade – o psíquico é dirigido pela educação;
o espiritual, contudo, não pode ser educado, tem que ser realizado – o
espiritual “é” só na auto-realização, na “realidade da realização” da
existência. (1978: 131). Na Gestalt-terapia, como, de resto, em todo o
movimento humanista em Psicologia, a compreensão de como se dá o
desenvolvimento humano se baseia na crença de que o ser humano tem uma
tendência para a autorrealização e a para o crescimento, um potencial que se
realizará se forem dadas as condições suficientemente adequadas para tanto. A espiritualidade
- a busca do sentido existencial - e a religiosidade - a busca pelo transcendente
- são alguns dos pontos através dos quais o desafio do crescimento estará presente,
ou seja, a maneira como uma pessoa vive sua espiritualidade e sua religiosidade
também se modifica à medida que a pessoa se modifica em seu caminho de amadurecimento.
Amatuzzi, ao fazer uma pesquisa na qual buscava uma
descrição fenomenológica da experiência religiosa das pessoas, constatou que embora
manifestassem uma estrutura comum de experiência, (essas pessoas) mostravam
níveis diferentes de maturidade religiosa. E mais. Esses níveis tinham uma
íntima relação com o nível de maturidade humana em geral. (2001:25)
Ampliando sua pesquisa em busca da compreensão de
um possível desenvolvimento religioso, Amatuzzi chega à idéia de que no
desenvolvimento humano há, basicamente, oito desafios centrais, dois dos quais
nos interessam mais agora, por terem conexão mais estreita com a
espiritualidade e a religiosidade: a) “passar
do tédio da onipotência para a alegria da liberdade, redescobrir um sentido
pessoal, ser livre”; b) “passar das perdas e apegos ao desprendimento
radical, encontrar o além de si, entregar-se.” (2001:34)
Esses dois desafios se dirigem à espiritualidade,
da forma como a estamos compreendendo aqui. Eles têm relação com a busca de
sentido existencial e com a procura de uma hierarquia de valores. O primeiro, “passar do tédio da onipotência para a alegria
da liberdade”, denota a possibilidade de a espiritualidade vencer um de seus
maiores inimigos, a onipotência, pois a espiritualidade viceja somente em meio
à dúvida e à confiança, fenecendo quando diante de certezas. Isso porque a
espiritualidade é inquietação, é curiosidade, é contínua tecelagem de sentido
em meio às tramas das circunstâncias. A certeza, mãe da idolatria, é um
poderoso veneno contra a espiritualidade (e também contra a religiosidade),
reduzindo-a a passividade, a obediência cega, a apatia, gerando radicalismos ou
tédio, nutrindo a falta de sentido e a indiferença, fenômenos infelizmente tão
comuns em nossos tempos pós-modernos.
O segundo desafio “passar das perdas e apegos ao
desprendimento radical, encontrar o além de si, entregar-se” pode ser entendido
como o projeto final do desenvolvimento da espiritualidade e também da
religiosidade, marcando um paradoxal ponto de encontro último dessas duas
qualidades humanas. Isso porque desprender-se, desapegar-se, entregar-se, vislumbrar
o além de si, são atos que compõe a vivência da fé.
O paradoxo está em que essa fé tanto pode ser
religiosa quanto arreligiosa, não importa muito. O que importa é que ela traga
em seu bojo a possibilidade do sentido, a percepção do todo, do qual cada um de
nós é ínfima e essencial parte. Se junto da fé vier a possibilidade do sentido
último, tanto melhor. Fritz Perls define o amadurecimento como “um processo
contínuo de transcender o suporte ambiental e desenvolver o auto-suporte, o que
significa uma redução crescente das dependências” (1997: 11), ou seja, é um
fenômeno baseado no crescimento interligado do autoconhecimento, da
autoconfiança e da fé. O autoconhecimento é construção-desconstrução-construção
paulatina e cotidiana do reconhecimento dos limites, pessoais e exteriores,
sempre móveis.
A autoconfiança se fundamenta na sensação de se
estar em casa no mundo e se fundamenta também na autonomia e no
autoconhecimento, levando à fé, matriz do sentido e do sentido último,
finalidade limite da espiritualidade. Autoconhecimento, autonomia,
autoconfiança e fé só são possíveis e só têm sentido no contínuo contato e na
contínua troca com os outros.
Como bem afirma Valle: “a espiritualidade adulta
supõe conhecimento e aceitação dos próprios limites e possibilidades. Não é um
ato de resignação e sim uma atitude corajosa e humilde de alguém que sabe que
sua vida é um projeto aberto ao ser mais, ao comungar mais, ao cuidar do que
precisa ser cuidado. É uma experiência de despojamento que se coloca nas
antípodas do poder, da autossuficiência, e do imediatismo egocêntrico”.
(2005:105).
Para que a espiritualidade seja tudo isso, ela
precisa ter um vigoroso combustível. Assim, podemos entender que o que sustenta
a espiritualidade é a fé. Mas não necessariamente a fé religiosa. Note que falo
de fé, não de crença em dogmas religiosos, em ritos ou em celebrações - a
crença pode ser a forma de substancialização da fé para algumas pessoas, mas
ela não é a fé. Às vezes, até pelo contrário, a crença encobre a ausência de
fé, na medida em que a crença pode dar parâmetros externos à pessoa, parâmetros
esses que nunca alcançarão a qualidade dos parâmetros internos e intensos que a
fé traz.
Não falo da fé em determinado deus ou deuses, que
este é o terreno da crença. Falo da fé na vida, da fé no significado da
presença de cada pessoa em sua circunstancialidade histórica, física e
cultural. Falo da fé na riqueza que a vida de cada pessoa representa para a totalidade.
É esta fé que abre o coração para o amor, para o compartilhamento, para os encontros
mais profundidade. A vivência da fé é um dos focos dos estudos da Psicologia da
Religião. Depois de me embasar na Psicologia da Personalidade para delimitar o
lugar da espiritualidade e da religiosidade no ser humano, depois de me apoiar
na Psicologia do Desenvolvimento para confirmar que é possível que a
espiritualidade (e a religiosidade) de uma pessoa evolua ao longo da
existência, é à Psicologia da Religião que peço apoio agora para o último dos
três destaques nessa nossa conversa sobre a espiritualidade humana.
A Psicologia da Religião ainda é uma área pouco
conhecida e pouco explorada pelos psicólogos brasileiros, que ainda, em sua
maioria, não perceberam a enorme fertilidade desse campo. Vou definir, muito
sucintamente, as principais características desse campo de estudos da
Psicologia.
Para Massih, o objeto de estudo da Psicologia da
Religião é a experiência religiosa, de modo que se pretende “entender o
fenômeno religioso desde as motivações, experiências, atitudes e dinâmicas
afetivas e cognitivas presentes nos comportamentos religiosos” (2007:6-7).
Mario Aletti entende que a Psicologia da Religião,
é “orientada para o funcionamento da psique
diante da religião” (2006:1). Para Valle, a Psicologia da Religião, ao estudar
por que e como alguns fenômenos religiosos acontecem e são vivenciados
psicologicamente por um sujeito, indaga sobre a estrutura psicológica que está
por trás das formas de vivência e experiência religiosa. [...] A psicologia da
religião vê como sua tarefa descrever e “explicar” psicologicamente a estrutura
e a dinâmica do agir religioso do ser humano. (1998:51)
Belzen defende que o propósito da Psicologia da
Religião é usar os instrumentos psicológicos (teorias, conceitos, insights,
métodos e técnicas) para analisar e entender a religião. A Psicologia da
Religião deve ser, essencialmente, neutra diante de seu objeto: “ela não pretende promover nem combater a
religião, apenas analisá-la e entendê-la.” (2006:24)
Dessa forma, ela não é uma Psicologia religiosa, da
mesma maneira que também a chamada Psicologia Pastoral não pode ser qualificada
como um Psicologia da Religião. Do meu ponto de vista, fazem parte do campo da
Psicologia da Religião, além da espiritualidade e da religiosidade, a religião
enquanto campo, bem como compreensões acerca da própria religião, com seus
mitos, ritos e símbolos, compreensões acerca das instituições religiosas e de
seus componentes, sem esquecer ainda que a Psicologia da Religião tem também o
que acrescentar quando se trata de compreender e discutir a moral religiosa.
Embora Geraldo Paiva (2005:43) defenda que se
separe a Psicologia da Espiritualidade da Psicologia da Religião, pois
espiritualidade e religião são coisas diferentes e merecem duas formas
diferentes de olhar através da Psicologia, são tantas as aproximações entre os
dois fenômenos que me parece que cabe, sim, um apoio na Psicologia da Religião
quando estudamos a espiritualidade humana. Penso nisso especialmente quando
reflito sobre a Psicologia clínica, a prática psicoterapêutica, que precisa de
alguns aportes da Psicologia da Religião, como se pode depreender do alerta de
Hycner:
O espiritual propicia um contexto que ajuda a
tornar a aparente insignificância de nossas ações individuais mais
significativas. Muitas pessoas procuram a terapia porque sentem que sua vida
não tem sentido. Viver a vida como a incorporação do espiritual, torna-a ao
menos em parte, mais significativa. O espírito humano só pode crescer se for
nutrido por algo muito maior que ele mesmo. Nossa limitação humana nos abre
para o ilimitado. (1995:88)
Essa abertura para o ilimitado de que fala Hycner é
o encontro fértil entre a espiritualidade humana e a totalidade. Pode ser
também, mas não precisa ser, o lugar do encontro profundo da espiritualidade
com a religiosidade. Aliás, essa é a maneira mais comum que encontramos: a
espiritualidade expressa enquanto religiosidade. Acredito que isso se dê porque
somos seres de relação e porque uma das principais funções da religião é a congregação
de pessoas.
Enfim, para irmos finalizando, há uma última
questão que me parece importante abordar agora: para que tudo isso? Para que
serve essa distinção mais acurada entre espiritualidade e religiosidade? Por
ora, penso em, pelo menos, três motivos pelos quais toda essa teorização faz
sentido. Antes de apontá-los, quero lembrar que estamos aqui lidando com construtos,
com dois construtos, espiritualidade e religiosidade. Os construtos são construções
culturais desenvolvidas a fim de possibilitar uma compreensão mais eficaz de determinados
fenômenos. O construto é uma redução, é algo que possibilita que se estude um
fenômeno de modo a compreender da melhor maneira possível esse fenômeno.
Então, o uso desses dois construtos,
espiritualidade e religiosidade, nos possibilita alguns ganhos. Primeiro, no
campo acadêmico, conceitos mais esclarecidos e mais generalizados podem servir
melhor para a comunicação entre os estudiosos, prevenindo equívocos e debates
estéreis, possibilitando pesquisas mais úteis socialmente. Segundo, no campo religioso,
a diferenciação mais clara entre espiritualidade e religiosidade possibilita
uma maior tolerância religiosa, uma melhor convivência entre as diversas
religiosidades. Terceiro, no campo das psicoterapias, essa distinção entre os
dois fenômenos possibilita ao psicoterapeuta um suporte melhor para o
diagnóstico de seu cliente, pois, distinguindo com clareza a religiosidade da
espiritualidade, o terapeuta, na busca da compreensão de seu cliente, ficará
mais atento à maneira como seu cliente está vivendo sua religiosidade, quando
ela existe, ou seja, ficará mais atento ao fenômeno mais profundo e mais significativo,
a espiritualidade, sem descuidar, é claro, da possível forma de expressão dessa
vivência, a religiosidade.
Isso quer dizer que, se num processo
psicoterapêutico a religiosidade tem que ter vez, voz, espaço, ouvidos,
atenção, presença, também – e especialmente – a espiritualidade deve ser acolhida.
Deve ter especial acolhida, na medida em que ela é a raiz da religiosidade. Ao mesmo
tempo, é ela, a espiritualidade, que dá limites para a atuação do
psicoterapeuta.
Nosso papel, enquanto psicoterapeutas, é acolher e
ajudar o ser humano como um todo, sua espiritualidade inclusive, até o ponto em
que ela, a espiritualidade, componha um diálogo delicado, respeitoso, franco e
poético com o sentido da existência. Uma vez estabelecido e consolidado esse
diálogo, o que nos resta é humildemente nos recolhermos, nutridos pela
deliciosa sensação do dever cumprido, para que nosso cliente possa percorrer sozinho
o caminho da integração com o todo, da universalidade e da comunidade. Paradoxalmente,
o caminho e o lugar da mais necessária e profunda solidão.
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