sexta-feira, 15 de março de 2013

ESPIRITUALIDADE E RELIGIOSIDADE: ARTICULAÇÕES



BLOG ESPIRITUALIDADE E RELIGIOSIDADE. AUTOR: ÁLAZE GABRIEL GIFTED.
 
Autoria: Ênio Brito Pinto

RESUMO

A partir da constatação de que o termo “espiritualidade” ainda não tem uma conotação psicológica tão clara quanto seria desejável, o texto debate, com fundamentação na Psicologia da Personalidade, na Psicologia do Desenvolvimento e na Psicologia da Religião, o que se pode entender por ‘espiritualidade’ em Psicologia e como esse conceito se diferencia do conceito de “religiosidade”. Fazem-se algumas considerações sobre como essa conceituação pode auxiliar o psicoterapeuta em seu trabalho clínico.
Quero começar detalhando o caminho que trilharei neste texto: entendo que o termo ‘espiritualidade’ ainda não tem uma conotação tão clara em Psicologia como seria desejável, o que, me parece, ser uma deficiência que precisa ser corrigida. Debater o que se pode entender por ‘espiritualidade’ em Psicologia é, assim, o foco desse meu trabalho. Escolhido o foco, há que se definir uma estratégia para abordá-lo. Assim, passarei por três importantes áreas da Psicologia para iluminar da melhor forma possível o enfoque adotado: falarei da Psicologia da Personalidade, da Psicologia do Desenvolvimento e da Psicologia da Religião, para finalizar fazendo algumas poucas considerações sobre como tudo o que levantarei aqui pode auxiliar o psicoterapeuta em seu trabalho clínico.
Há, na Psicologia, alguns termos que são razoavelmente inequívocos, quer dizer, há alguns termos que todo psicólogo, independentemente de sua abordagem, é capaz de definir com uma boa dose de precisão. Insight, condicionamento, transferência e contratransferência, complexo de Édipo, persona e sombra, objeto transicional, intencionalidade, autoatualização, hierarquia de necessidades, dentre outros, figuram nesse rol. Há outros termos que não são assim tão consensuais: self, inconsciente, liberdade e espiritualidade são alguns que compõem essa segunda lista. Quero ver se daqui a pouco, ao fim da leitura, poderemos fazer o termo ‘espiritualidade’ mudar de lista. Para isso, vou buscar definir da maneira mais clara o que a espiritualidade é e o que ela não é do ponto de vista psicológico, além de diferenciá-la da religiosidade, pois não é rara, no meio dos psicólogos, e mesmo no meio dos religiosos, uma certa confusão entre uma e outra.
Essa certa confusão que há entre os psicólogos quanto ao tema da espiritualidade tem uma série de motivos, dentre os quais se destacam especialmente dois: primeiro, o pouco espaço que as faculdades de Psicologia dedicam ao tema da religião e até à Psicologia da Religião, muito mais desenvolvida na Europa e nos EUA do que no Brasil; segundo, como bem aponta Marília Ancona-Lopez, há enorme dificuldade para o psicólogo inserir as suas experiências espirituais e religiosas em um universo acadêmico e profissional que as aceite, integre e compartilhe, o que acaba por gerar, nos psicólogos, uma dificuldade para desenvolver uma ação psicológica congruente consigo mesmo no que diz respeito ao tema da espiritualidade e da religião. (2005:153)
Espiritualidade e religiosidade são temas próximos, mas indicam fenômenos diferentes. Vou continuar essa nossa conversa explorando a diferenciação entre espiritualidade e religiosidade. E me apoiarei, a princípio, na Psicologia da Personalidade para tentar esclarecer as diferenças entre esses dois conceitos, tomando todo o cuidado para evitar uma postura reducionista, ou seja, eu sei que trago um ponto de vista, o qual não é o único quanto a este tema. Dizendo de outro modo: o que trago hoje é uma contribuição que tem como objetivo tentar uma melhor clareza no campo da Psicologia quando se fala desses temas tão importantes como a espiritualidade e a religiosidade.
Então, vamos à Psicologia da Personalidade. Pensando em termos de personalidade, a espiritualidade é estrutura e a religiosidade é processo. Vou explicar. O campo do estudo da personalidade trata, fundamentalmente: 1) da pessoa como um todo e 2) das diferenças individuais. Com isso, o que se procura é compreender o comportamento humano através da maneira como cada indivíduo funciona na interação dos diversos aspectos que compõem seu todo, seu jeito complexo de ser. Gilles Delisle, gestaltista canadense, caracteriza a personalidade como um específico e relativamente estável modo de organizar os componentes cognitivos, emotivos e comportamentais da própria experiência. O significado (cognitivo) que uma pessoa atribui aos eventos (de comportamento) e os sentimentos (emocional) que acompanham esses eventos permanecem relativamente estáveis ao longo do tempo e proporcionam um senso individual de identidade. Personalidade é esse senso de identidade e o impacto que ele provoca nas outras pessoas. (1999:19)
Grosso modo, podemos compreender o ser humano como um ser  animobiopsicocultural, ou seja, um ente composto por três níveis articulados, o corporal, o psíquico e o espiritual, um ente que vive em uma cultura, a qual é configurada social, geográfica e historicamente, ou seja, a cultura compõe um campo que configura o ser humano, embora não o determine.
Com isso, estou dizendo que há alguns dados que são estruturais na personalidade de cada pessoa, dados esses que são entrelaçados por uma certa intencionalidade na composição do sujeito humano. Fazem parte da estrutura da personalidade humana, dentre outros aspectos, a sexualidade, as disposições genéticas, a possibilidade da emoção, do sentimento e do senso de identidade, a possibilidade da reflexão profunda sobre si, sobre a existência e sobre o mundo, a possibilidade da hierarquização dos valores. Nesse modo de pensar, a corporeidade está especialmente representada pelas disposições genéticas e pela sexualidade, compondo, com a intencionalidade, o corpo vivido; o psiquismo está especialmente presente na possibilidade de se lidar com as emoções e os sentimentos, compondo a apropriação da realidade e o senso de identidade; a espiritualidade está especialmente presente na possibilidade da hierarquização dos valores, nas decisões, na reflexão profunda sobre a existência e, fundamentalmente, na possibilidade – eu diria até na necessidade – que tem o ser humano de tecer um sentido para a sua vida, de ter um bom motivo para continuar vivendo. Por isso é que eu afirmei, há pouco, que a espiritualidade tem lugar na estrutura da personalidade humana.
Ao estudar a Psicologia da Personalidade, aprendemos que há, na personalidade, estabilidade, persistência, constância. Há também mudança, plasticidade, alterações ao longo do tempo e a partir das experiências. Também se pode depreender que a personalidade é um sistema, ou seja, é um todo complexo e dinâmico. Um sistema que pode ser percebido e estudado principalmente através do comportamento.
Esse sistema/personalidade tem, essencialmente, duas partes: estrutura e processo. Dizendo melhor ainda: esse sistema/personalidade se caracteriza por ser um complexo relacionamento entre estrutura e processo. A estrutura da personalidade é o que é constante. São os padrões reincidentes, ou, no dizer de Messick, são componentes da organização da personalidade relativamente estáveis, usados para explicar as semelhanças reincidentes e consistências do comportamento ao longo do tempo e através das situações. (apud PERVIN 1978:555)
É a estrutura que possibilita certa previsibilidade na vida de cada pessoa e que possibilita também o autoconhecimento. Em constante diálogo com a estrutura está o processo, o outro componente do sistema/personalidade. Processo é o que se inova e se renova, é o momentâneo ou circunstancial. É o fluido. O processo traz a possibilidade da mudança, da surpresa, da inovação e pode provocar, ao longo do tempo, modificações em aspectos da estrutura ou na maneira de expressão de aspectos da estrutura da personalidade.
Estrutura e processo são igualmente importantes no sistema/personalidade e uma pessoa será, do ponto de vista psicológico, tão mais saudável quanto melhor for o diálogo entre esses dois fundamentos de sua personalidade. Esse diálogo permitirá que essa pessoa possa se modificar constantemente ao longo da existência, permanecendo sempre a mesma pessoa. Se pensarmos no famoso aforismo de Sócrates, o “conhece-te a ti mesmo”, veremos que, para ele, a estrutura é o ponto mais importante; se pensarmos na resposta do Zen a Sócrates, “não tu mesmo”, veremos que aí a ênfase está colocada no processo.
Do ponto de vista da Psicologia da Personalidade, somos estrutura e processo, sempre novos e potencialmente modificáveis, sempre os mesmos, embora sempre diferentes, ou seja, se o ideal é um bom padrão de autoconhecimento, igualmente ideal é que a pessoa não perca a consciência de que nunca está pronta, de que a vida traz contínua possibilidade de renovação e de mudança.
Como já disse, no meu modo de ver, espiritualidade tem relação com a estrutura da personalidade, ao passo que religiosidade tem relação com processo. Assim, não se deve identificar puramente religiosidade e espiritualidade porque pode haver experiências de profundo sentido espiritual que não têm qualquer conotação religiosa. Assim, se a espiritualidade é inerente ao ser humano, a religiosidade não o é, uma vez que se há pessoas “arreligiosas”, não é possível uma pessoa não-espiritual. Se a espiritualidade é parte integrante da personalidade, a religiosidade é parte acessória, embora importante para a maioria das pessoas, especialmente, mas não unicamente, por ser precioso meio de inserção comunitária e cultural.
De todo modo, a espiritualidade não tem necessariamente relação com a religião. Para Giovanetti, o termo “religiosidade” “implica a relação do ser humano com um ser transcendente”, ao passo que o termo “espiritualidade” “não implica nenhuma ligação com uma realidade superior” (2005:136). Para esse autor, a espiritualidade significa a possibilidade de uma pessoa mergulhar em si mesma. Ele completa: o termo ‘espiritualidade’ designa toda vivência que pode produzir mudança profunda no interior do homem e o leva à integração pessoal e à integração com outros homens” (2005:137).
A espiritualidade tem relação com valores e significados: “o espírito nos permite fazer a experiência da profundidade, da captação do simbólico, de mostrar que o que move a vida é um sentido, pois só o espírito é capaz de descobrir um sentido para a existência” (2005:138). Farris acrescenta outra variável importante na definição do que seria a espiritualidade: “a espiritualidade é a construção, ou descoberta de significado no meio de relacionamentos, ou interações entre a pessoa, o outro e o mundo.” (2005:165)
Para Valle, a espiritualidade não se opõe ao material, corpóreo, mundano; não rejeita ou nega a natureza; não tem nada a ver com a fuga do mundo; está encarnada na vida de cada pessoa e sua época; “expressa o sentido profundo do que se é e se vive de fato”; precisa de silêncio reflexivo e de contemplação; “assume o corpo e permite que o homem ultrapasse o nível biológico e emocional de suas vivências, mesmo das mais elevadas e sublimes” (2005:102).
Embora a espiritualidade seja característica de todo ser humano, ela pode ser cultivada ou não. Uma das maneiras, mas, nem de longe a única maneira através da qual a espiritualidade pode ser cultivada, é através da religião. Nesse sentido, podemos dizer que a religião é posterior à espiritualidade e uma manifestação dela. Embora seja difícil a delimitação precisa do que seja religião, há alguns pontos que são bastante presentes: a religião é um sistema de orientação e um objeto de devoção; os símbolos religiosos evocam sentimentos de reverência e de admiração, além de estarem, em geral, associados a um ritual; na religião, encontramos também sentimentos, atos e experiências humanas em relação ao que se considera sagrado.
No grande espectro de definições que podem ser levantadas para se entender o que é religião, encontrar-se-ão alguns elementos comuns, como a presença de mitos (especialmente mitos de origem e de fim), de ritos, de símbolos, da cultura e da congregação social de pessoas, além da associação que a religião pode ter com a espiritualidade, sem esquecer das normas morais sobre como lidar com a vida, com o mundo e com as pessoas.
Originária da religião, a religiosidade pode ser entendida como uma experiência pessoal e única da religião, ou seja, “a face subjetiva da religião”, como afirma Valle (1998:260). A religiosidade pode ser uma maneira da espiritualidade se manifestar, mas não é a única maneira, ou seja, do mesmo modo que há pessoas de intensa religiosidade e pouca espiritualidade, há pessoas de nenhuma religiosidade, como um ateu ou um agnóstico, por exemplo, que podem manifestar uma intensa espiritualidade. Em outros termos: a religiosidade implica uma referência ao transcendente, ao passo que a espiritualidade implica uma referência ao sentido. Elas podem se encontrar, mas não são a mesma coisa: como já afirmei, existe a possibilidade de que alguém viva uma espiritualidade arreligiosa, isto é, uma espiritualidade que não se liga a nenhuma crença religiosa (GIOVANETTI 2004: 11).
Quando se dá o encontro entre a espiritualidade e a religiosidade, o ser humano se vê diante de indagação sobre o sentido último da existência. A espiritualidade, por si só, busca o sentido para a existência na existência, não necessariamente o sentido último, preocupação maior da religiosidade. Se a espiritualidade me faz buscar o sentido para a minha vida, no encontro com a religiosidade esta busca abarca também o além da vida, o último.
O fato desse encontro se dar não caracteriza necessariamente uma experiência de crescimento. A religiosidade tanto pode ser uma fonte de força para as pessoas como pode, também, ser um refúgio para a fraqueza, sendo que nenhuma dessas duas possibilidades é boa ou ruim por si mesma. Como o ser humano tem capacidade tanto para o bem quanto para o mal, a religiosidade pode, por um lado, corroborar a dignidade pessoal e o senso de valor, promover o desenvolvimento da consciência ética e da responsabilidade pessoal e comunitária, ou, por outro lado, a religiosidade pode diminuir a percepção pessoal de liberdade, pode gerar uma crença de que não seja tão necessário o cuidado pessoal, e pode facilitar a evitação da ansiedade que geralmente acompanha o enfrentamento autêntico das possibilidades humanas.
Com isso quero dizer que a relação e o diálogo entre a espiritualidade e a religiosidade não é necessariamente harmonioso: a religiosidade pode ser consoante com a espiritualidade e, assim, constituir possibilidade de busca de sentido e de aprofundamento em si e no mundo, mas a religiosidade pode ser também fonte de alienação, de fuga do espiritual, de superficialidade existencial. Dependendo da maneira como é vivida, a religiosidade pode encobrir a espiritualidade, pode até sufocá-la, como é o caso dos idólatras, dos fanáticos religiosos, das pessoas supostamente ingênuas que não conseguem sequer criticar sua religião, assim como é o caso das pessoas que não participam comunitária ou ecologicamente do mundo.
Agora, para aprofundarmos um pouco melhor nossa compreensão dessa relação entre a espiritualidade e a religiosidade, vamos pedir ajuda à Psicologia do Desenvolvimento. Só para lembrar: o estudo da Psicologia do Desenvolvimento tem como foco o desenvolvimento humano em toda a sua vida, com maior atenção para os aspectos físico-motor, intelectual, afetivo-emocional e social (BOCK 1994: 80). Nesse estudo, considera-se toda a personalidade da pessoa, ou seja, seus aspectos corporais, psíquicos, espirituais e culturais, entendendo que a pessoa tende a evoluir de um nível menos complexo para níveis progressivamente mais complexos de organização. A noção de autoatualização, tão cara para os gestalt-terapeutas, é levada em conta pela Psicologia do desenvolvimento. (FITZGERALD e STROMMEN 1975: 13)
Nesse trajeto evolutivo que caracteriza o desenvolvimento humano, também a espiritualidade e a religiosidade podem evoluir, de modo que não é estranho podermos falar em uma espiritualidade e em uma religiosidade imaturas ou maduras. Para tanto, é preciso que a gente se lembre de que o amadurecimento não se dá pela simples passagem pelo tempo, mas pela forma como se passa pelo tempo. Passar pelo tempo é inevitável, amadurecer nesse período é possibilidade, não decorrência natural. Como lembra Valle não basta a “maturação” (mais ligada aos condicionamentos psicofisiológicos) para se ter o “amadurecimento” que só se explica no plano do propriamente humano e tem necessariamente a ver com a criatividade, a arte, a estética e – de maneira extremamente complexa – com a espiritualidade. (2005:107)
Também não é por outro motivo que Frankl afirma que se o físico é dado pela hereditariedade – o psíquico é dirigido pela educação; o espiritual, contudo, não pode ser educado, tem que ser realizado – o espiritual “é” só na auto-realização, na “realidade da realização” da existência. (1978: 131). Na Gestalt-terapia, como, de resto, em todo o movimento humanista em Psicologia, a compreensão de como se dá o desenvolvimento humano se baseia na crença de que o ser humano tem uma tendência para a autorrealização e a para o crescimento, um potencial que se realizará se forem dadas as condições suficientemente adequadas para tanto. A espiritualidade - a busca do sentido existencial - e a religiosidade - a busca pelo transcendente - são alguns dos pontos através dos quais o desafio do crescimento estará presente, ou seja, a maneira como uma pessoa vive sua espiritualidade e sua religiosidade também se modifica à medida que a pessoa se modifica em seu caminho de amadurecimento.
Amatuzzi, ao fazer uma pesquisa na qual buscava uma descrição fenomenológica da experiência religiosa das pessoas, constatou que embora manifestassem uma estrutura comum de experiência, (essas pessoas) mostravam níveis diferentes de maturidade religiosa. E mais. Esses níveis tinham uma íntima relação com o nível de maturidade humana em geral. (2001:25)
Ampliando sua pesquisa em busca da compreensão de um possível desenvolvimento religioso, Amatuzzi chega à idéia de que no desenvolvimento humano há, basicamente, oito desafios centrais, dois dos quais nos interessam mais agora, por terem conexão mais estreita com a espiritualidade e a religiosidade: a)  “passar do tédio da onipotência para a alegria da liberdade, redescobrir um sentido pessoal, ser livre”; b) “passar das perdas e apegos ao desprendimento radical, encontrar o além de si, entregar-se.” (2001:34)
Esses dois desafios se dirigem à espiritualidade, da forma como a estamos compreendendo aqui. Eles têm relação com a busca de sentido existencial e com a procura de uma hierarquia de valores. O primeiro,  “passar do tédio da onipotência para a alegria da liberdade”, denota a possibilidade de a espiritualidade vencer um de seus maiores inimigos, a onipotência, pois a espiritualidade viceja somente em meio à dúvida e à confiança, fenecendo quando diante de certezas. Isso porque a espiritualidade é inquietação, é curiosidade, é contínua tecelagem de sentido em meio às tramas das circunstâncias. A certeza, mãe da idolatria, é um poderoso veneno contra a espiritualidade (e também contra a religiosidade), reduzindo-a a passividade, a obediência cega, a apatia, gerando radicalismos ou tédio, nutrindo a falta de sentido e a indiferença, fenômenos infelizmente tão comuns em nossos tempos pós-modernos.
O segundo desafio “passar das perdas e apegos ao desprendimento radical, encontrar o além de si, entregar-se” pode ser entendido como o projeto final do desenvolvimento da espiritualidade e também da religiosidade, marcando um paradoxal ponto de encontro último dessas duas qualidades humanas. Isso porque desprender-se, desapegar-se, entregar-se, vislumbrar o além de si, são atos que compõe a vivência da fé.
O paradoxo está em que essa fé tanto pode ser religiosa quanto arreligiosa, não importa muito. O que importa é que ela traga em seu bojo a possibilidade do sentido, a percepção do todo, do qual cada um de nós é ínfima e essencial parte. Se junto da fé vier a possibilidade do sentido último, tanto melhor. Fritz Perls define o amadurecimento como “um processo contínuo de transcender o suporte ambiental e desenvolver o auto-suporte, o que significa uma redução crescente das dependências” (1997: 11), ou seja, é um fenômeno baseado no crescimento interligado do autoconhecimento, da autoconfiança e da fé. O autoconhecimento é construção-desconstrução-construção paulatina e cotidiana do reconhecimento dos limites, pessoais e exteriores, sempre móveis.
A autoconfiança se fundamenta na sensação de se estar em casa no mundo e se fundamenta também na autonomia e no autoconhecimento, levando à fé, matriz do sentido e do sentido último, finalidade limite da espiritualidade. Autoconhecimento, autonomia, autoconfiança e fé só são possíveis e só têm sentido no contínuo contato e na contínua troca com os outros.
Como bem afirma Valle: “a espiritualidade adulta supõe conhecimento e aceitação dos próprios limites e possibilidades. Não é um ato de resignação e sim uma atitude corajosa e humilde de alguém que sabe que sua vida é um projeto aberto ao ser mais, ao comungar mais, ao cuidar do que precisa ser cuidado. É uma experiência de despojamento que se coloca nas antípodas do poder, da autossuficiência, e do imediatismo egocêntrico”. (2005:105).
Para que a espiritualidade seja tudo isso, ela precisa ter um vigoroso combustível. Assim, podemos entender que o que sustenta a espiritualidade é a fé. Mas não necessariamente a fé religiosa. Note que falo de fé, não de crença em dogmas religiosos, em ritos ou em celebrações - a crença pode ser a forma de substancialização da fé para algumas pessoas, mas ela não é a fé. Às vezes, até pelo contrário, a crença encobre a ausência de fé, na medida em que a crença pode dar parâmetros externos à pessoa, parâmetros esses que nunca alcançarão a qualidade dos parâmetros internos e intensos que a fé traz.
Não falo da fé em determinado deus ou deuses, que este é o terreno da crença. Falo da fé na vida, da fé no significado da presença de cada pessoa em sua circunstancialidade histórica, física e cultural. Falo da fé na riqueza que a vida de cada pessoa representa para a totalidade. É esta fé que abre o coração para o amor, para o compartilhamento, para os encontros mais profundidade. A vivência da fé é um dos focos dos estudos da Psicologia da Religião. Depois de me embasar na Psicologia da Personalidade para delimitar o lugar da espiritualidade e da religiosidade no ser humano, depois de me apoiar na Psicologia do Desenvolvimento para confirmar que é possível que a espiritualidade (e a religiosidade) de uma pessoa evolua ao longo da existência, é à Psicologia da Religião que peço apoio agora para o último dos três destaques nessa nossa conversa sobre a espiritualidade humana.
A Psicologia da Religião ainda é uma área pouco conhecida e pouco explorada pelos psicólogos brasileiros, que ainda, em sua maioria, não perceberam a enorme fertilidade desse campo. Vou definir, muito sucintamente, as principais características desse campo de estudos da Psicologia.
Para Massih, o objeto de estudo da Psicologia da Religião é a experiência religiosa, de modo que se pretende “entender o fenômeno religioso desde as motivações, experiências, atitudes e dinâmicas afetivas e cognitivas presentes nos comportamentos religiosos” (2007:6-7).
Mario Aletti entende que a Psicologia da Religião, é  “orientada para o funcionamento da psique diante da religião” (2006:1). Para Valle, a Psicologia da Religião, ao estudar por que e como alguns fenômenos religiosos acontecem e são vivenciados psicologicamente por um sujeito, indaga sobre a estrutura psicológica que está por trás das formas de vivência e experiência religiosa. [...] A psicologia da religião vê como sua tarefa descrever e “explicar” psicologicamente a estrutura e a dinâmica do agir religioso do ser humano. (1998:51)
Belzen defende que o propósito da Psicologia da Religião é usar os instrumentos psicológicos (teorias, conceitos, insights, métodos e técnicas) para analisar e entender a religião. A Psicologia da Religião deve ser, essencialmente, neutra diante de seu objeto:  “ela não pretende promover nem combater a religião, apenas analisá-la e entendê-la.” (2006:24)
Dessa forma, ela não é uma Psicologia religiosa, da mesma maneira que também a chamada Psicologia Pastoral não pode ser qualificada como um Psicologia da Religião. Do meu ponto de vista, fazem parte do campo da Psicologia da Religião, além da espiritualidade e da religiosidade, a religião enquanto campo, bem como compreensões acerca da própria religião, com seus mitos, ritos e símbolos, compreensões acerca das instituições religiosas e de seus componentes, sem esquecer ainda que a Psicologia da Religião tem também o que acrescentar quando se trata de compreender e discutir a moral religiosa.
Embora Geraldo Paiva (2005:43) defenda que se separe a Psicologia da Espiritualidade da Psicologia da Religião, pois espiritualidade e religião são coisas diferentes e merecem duas formas diferentes de olhar através da Psicologia, são tantas as aproximações entre os dois fenômenos que me parece que cabe, sim, um apoio na Psicologia da Religião quando estudamos a espiritualidade humana. Penso nisso especialmente quando reflito sobre a Psicologia clínica, a prática psicoterapêutica, que precisa de alguns aportes da Psicologia da Religião, como se pode depreender do alerta de Hycner:
O espiritual propicia um contexto que ajuda a tornar a aparente insignificância de nossas ações individuais mais significativas. Muitas pessoas procuram a terapia porque sentem que sua vida não tem sentido. Viver a vida como a incorporação do espiritual, torna-a ao menos em parte, mais significativa. O espírito humano só pode crescer se for nutrido por algo muito maior que ele mesmo. Nossa limitação humana nos abre para o ilimitado. (1995:88)
Essa abertura para o ilimitado de que fala Hycner é o encontro fértil entre a espiritualidade humana e a totalidade. Pode ser também, mas não precisa ser, o lugar do encontro profundo da espiritualidade com a religiosidade. Aliás, essa é a maneira mais comum que encontramos: a espiritualidade expressa enquanto religiosidade. Acredito que isso se dê porque somos seres de relação e porque uma das principais funções da religião é a congregação de pessoas.
Enfim, para irmos finalizando, há uma última questão que me parece importante abordar agora: para que tudo isso? Para que serve essa distinção mais acurada entre espiritualidade e religiosidade? Por ora, penso em, pelo menos, três motivos pelos quais toda essa teorização faz sentido. Antes de apontá-los, quero lembrar que estamos aqui lidando com construtos, com dois construtos, espiritualidade e religiosidade. Os construtos são construções culturais desenvolvidas a fim de possibilitar uma compreensão mais eficaz de determinados fenômenos. O construto é uma redução, é algo que possibilita que se estude um fenômeno de modo a compreender da melhor maneira possível esse fenômeno.
Então, o uso desses dois construtos, espiritualidade e religiosidade, nos possibilita alguns ganhos. Primeiro, no campo acadêmico, conceitos mais esclarecidos e mais generalizados podem servir melhor para a comunicação entre os estudiosos, prevenindo equívocos e debates estéreis, possibilitando pesquisas mais úteis socialmente. Segundo, no campo religioso, a diferenciação mais clara entre espiritualidade e religiosidade possibilita uma maior tolerância religiosa, uma melhor convivência entre as diversas religiosidades. Terceiro, no campo das psicoterapias, essa distinção entre os dois fenômenos possibilita ao psicoterapeuta um suporte melhor para o diagnóstico de seu cliente, pois, distinguindo com clareza a religiosidade da espiritualidade, o terapeuta, na busca da compreensão de seu cliente, ficará mais atento à maneira como seu cliente está vivendo sua religiosidade, quando ela existe, ou seja, ficará mais atento ao fenômeno mais profundo e mais significativo, a espiritualidade, sem descuidar, é claro, da possível forma de expressão dessa vivência, a religiosidade.
Isso quer dizer que, se num processo psicoterapêutico a religiosidade tem que ter vez, voz, espaço, ouvidos, atenção, presença, também – e especialmente – a espiritualidade deve ser acolhida. Deve ter especial acolhida, na medida em que ela é a raiz da religiosidade. Ao mesmo tempo, é ela, a espiritualidade, que dá limites para a atuação do psicoterapeuta.
Nosso papel, enquanto psicoterapeutas, é acolher e ajudar o ser humano como um todo, sua espiritualidade inclusive, até o ponto em que ela, a espiritualidade, componha um diálogo delicado, respeitoso, franco e poético com o sentido da existência. Uma vez estabelecido e consolidado esse diálogo, o que nos resta é humildemente nos recolhermos, nutridos pela deliciosa sensação do dever cumprido, para que nosso cliente possa percorrer sozinho o caminho da integração com o todo, da universalidade e da comunidade. Paradoxalmente, o caminho e o lugar da mais necessária e profunda solidão.

BIBLIOGRAFIA

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