terça-feira, 14 de maio de 2013

A MODERNIDADE DISPUTADA: O DISCURSO DO PROGRESSO DA NAÇÃO NO CONFLITO ENTRE O PROTESTANTISMO E O CATOLICISMO

BLOG ESPIRITUALIDADE E RELIGIOSIDADE. AUTOR: ÁLAZE GABRIEL GIFTED.

 

Autoria:

Eduardo Gusmão de Quadros. UEG e PUC Goiás.

 

RESUMO 

 

Esta investigação parte de um debate teórico acerca das relações entre a esfera religiosa e a construção da modernidade.  No caso de Goiás, a construção da nova capital e a fundação de diversas cidades pelo interior ocorreram sob o signo da modernização, impulsionadas pelo Estado Novo. Todavia, boa parte das análises tem ressaltado apenas os vínculos rurais e o importante papel das tradições no campo religioso. Pretendemos nesta pesquisa considerar as manifestações religiosas a partir do desejo de ser moderno, elemento constituinte dos sujeitos e de suas sociabilidades no território goiano desde os primórdios do século XX.

 

INTRODUÇÃO

 

A ideia de que a modernidade se afirmou contrapondo-se à religião é comumente encontrada. Para que o mundo da ciência se desenvolvesse, a crença religiosa teria entrado em declínio, numa relação de proporção inversa. Os clássicos da teoria social (v.g. FREUD, 1996; MARX, 1974; WEBER, 1997) fundamentaram essa idéia[1]. Posteriormente, surgiu uma “teoria da secularização”, apoiada por autores de diferentes países, que defendia a vitória da racionalidade e da técnica ocidentais sob o mundo das crenças mágico-religiosas. As religiões perdiam sua “plausibilidade” (Berger), tornava-se “invisível” (Luckmann) e estaria cada vez mais “isolada da sociedade” (Luhmann)[2]. Nas últimas décadas, esse “pessimismo” teórico foi revisto.

Um exemplo deste processo pode ser dado pelo sociólogo norte-americano Peter Berger.  Ele foi um dos principais defensores da secularização nos anos sessenta, considerando-a um pressuposto de qualquer análise acerca do fenômeno religioso (BERGER, 1985). Em 1999, porém, escreveu que estava “essencialmente equivocado”, propondo uma “dessecularização” ou o “grande ressurgimento do religioso” (BERGER, 2000).

O importante pensador, contudo, não conseguiu ainda ver a modernidade como produtora de religiosidade.  Essa perspectiva advém mais de franceses como Marcel Gauchet (1985, 1998 e 2008) e, especialmente, Danielle Hervieu-Leger (1990 e 2008). A última autora defende a modernidade como produtora de religiões, sendo necessário:

 

Para avançar nesta direção, não manter-se unicamente dentro da perspectiva racionalista que associa por completo as ‘renovações’ religiosas contemporâneas com os impulsos modernizadores sucitados pela crise mundial e pelo desmantelamento das ideologias modernistas do progresso...; é necessário romper com o paradigma da incompatibilidade entre religião e modernidade... (HERVIEU-LEGER, 2008, p.29).

 

A cidade de Goiânia fora construída sob o estigma da modernidade[3]. Ela representa, sintetiza e é o pólo irradiador do processo de modernização do estado de Goiás. Esse projeto, encampado pelo interventor Pedro Ludovico no bojo das transformações causadas pela Revolução de Trinta, visava retirar a região de sua “atávica decadência”, impondo-se o ideário do progresso (CHAUL, 1997, p.206).

Progresso quase que imposto à força da lei. A estrutura autoritária da sociedade, o papel da liderança personalística e os conchavos entre a elite continuaram em vigor. Mas, agora, havia aquilo que Laclau (2010) denominara de “razão populista”, promovendo um grande rearranjo do espaço público, uma nova articulação entre governo e sociedade, possibilitando a emergência de discursos e atores antes inauditos.

Tais transformações, relativamente rápidas no Estado, interferiram grandemente no campo religioso[4]. Como se sabe, até o início da Republica o catolicismo era a religião oficial do Brasil, vigorando até então o direito do Padroado[5]. A criação de um governo laico já faz parte da modernização religiosa, pois a diferenciação e a autonomia das instituições básicas da sociedade estão inseridas na constituição da modernidade.

Curiosamente, o regime liderado por Getúlio Vargas se aproximava do modelo da neo-cristandade (AZZI, 1994), recompondo a aliança com o catolicismo. Em Goiás, contudo, ocorreu uma ruptura que embargou o processo. Enquanto o interventor planejava a nova capital, transferindo o governo para lá em 1937, o bispo se mudou para a cidade de Bonfim, ao sul do Estado. D. Emanuel de Oliveira tinha divergências pessoais e políticas com Pedro Ludovico, um líder maçon[6]. A nova capital não poderia ser “secular”, como pretendia o interventor (VAZ, 1997, p.262).

 

POSSIBILIDADES DE SIGNIFICAÇÃO

 

O enfoque teórico-metodológico propício a nossa investigação relaciona-se a duas abordagens básicas: uma compreensão hermenêutica dos processos culturais e o enfoque fenomenológico da experiência religiosa. Com isso, estamos afirmando que não concordamos com as duas vias da história cultural apontadas por Peter Burke: uma que enfatiza os sentidos e outra as representações (Burke, 2005: 9). A nosso ver, devemos caminhar na investigação das representações sociais para a construção dos sentidos da experiência (cf.Bonnel, V. e Hunt, L., 1999).  

Destarte, propomos considerar o âmbito cultural como um conjunto de possibilidades topocronológicas de significação. A nosso ver, existe, socialmente falando, uma zona de possibilidades de sentido e elaboração para cada ação individual. A “invenção” do mundo parte do que é dado, da experiência vivida. Não há nas culturas uma infinitude de possibilidades, mas um conjunto de possíveis onde se cria a liberdade. Esta última é processual, conquistada, não consistindo, como geralmente se pensa, num valor metafísico. Esse conjunto historicamente delimitado de possíveis inscreve-se na espacialidade e na temporalidade captada pelos corpos. É o que queremos dizer com o termo topocronológico, reunificando dimensões que foram rompidas na disciplinarização acadêmica (a Geografia e a História). Ao incorporar o espaço enquanto lugar e o evento enquanto tempo, temos a abertura das significâncias

Por que colocar a ênfase na possibilidade de significação e não nos significados? Porque os últimos são posteriores, sendo na maioria das vezes préconstruídos pela linguagem e pela tradição (Gadamer, 1997). Pretendemos, assim, dar maior historicidade ao conceito de cultura, pois sua elaboração por áreas do conhecimento mais preocupadas com a conservação do que com a mudança – é só lembrar do temor das “perdas culturais” – marcou-o profundamente. É comum, inclusive, encontrá-lo reificado, abstraído, tratado como uma “coisa” além dos seus artífices.

A ação de significar, frágil e instável, habilita tanto o pensar quanto o agir, como demonstra Ricoeur (1999). Adentramos, portanto, na esfera de interdependências, que podemos ainda chamar de dialéticas, para indicar a confluência e a distinção, a interação e o conflito, a simbiose e o arranjo tensional. Como o movimento de respiração, os atores sociais vivem atravessando as veredas da subjetivação e da objetivação da situação envolvente, elaborando assim o que se concebe por realidade. Sendo a cognição uma demanda pessoal e social, os vínculos fundadores da coletividade vão sendo simultaneamente estabelecidos.

Estamos afirmando que a relação social e a elaboração cultural são concomitantes e interdeterminados. Autores como Ciro F. Cardoso (2005) enxergam na atualidade um conflito de posições excludentes nesta questão, o que é identificado com as posturas historiográficas modernas e pós-modernas. A tipologia dos “modos de explicar” que propõe são, todavia, demasiadamente pesados nas tintas, apesar de concordarmos com o alerta dado por ele de que muitas vezes o termo cultura poderia ser substituído vantajosamente, e com maior precisão, por conceitos próximos como valores, normas, idéias, imagens, objetos ou técnicas. Tais traços dos fenômenos culturais servem para guiar nossa caracterização. Portanto, a cultura nesta pesquisa engloba:

a)      uma esfera cognitiva – As representações de si, dos outros e do mundo, que tendem a ser reproduzidas para fixar um espaço social e um regime de verdades. Por meio delas, as operações de ordenação e planejamento são partilhadas, o que igualmente acarreta rivalidades. Os saberes aceitos coletivamente desencadeiam a tradicionalização, uma semântica pré-estabelecida que prossegue sendo adaptada à medida que é invocada;

b)      uma performance – Os modos de fazer assumidos a partir da competência significativa, o que pode resultar em estilos. Por estilos compreendemos formas relativamente padronizadas de apropriação e exposição (lingüística, comportamental) encontradas numa dada configuração social;

c)      um campo motivacional – Os afetos e desejos são componentes significativos fundamentais. Não se pode reduzir o comportamento humano à mitologia do ser racional. Entender as razões dadas é ir além das legitimações propostas.

Outros aspectos poderiam ser apontados, mas a ampliação demasiada de um conceito retira dele sua funcionalidade. Os traços apontados não podem ser separados, porque interligados constroem um desenho do agir histórico. Reunir ações, representações e significações, como recomenda Chartier (2006), nos ajudará a compreender melhor as experiências religiosas individuais e coletivas.

Max Weber, em seus estudos de sociologia religiosa, indicou que seria melhor chegarmos a alguma definição de religião no final de nossas investigações e não partir delas (1997:65). Não é que consideremos inúteis as tentativas de construção teórica, elas dão uma direção de pesquisa, mas consideramos, como o mestre alemão, mais pertinente uma abordagem de teor pragmático.

Não existe religião “sozinha”. Daí a importância de não se partir de um nível abstrato, isolado, sendo preferível identificar como funciona o religioso em um dado grupo, época ou cultura (Caputo, 2002). Para identificá-lo, entretanto, é necessário partir de algumas características.

A escola fenomenológica foi a que forneceu as contribuições mais relevantes neste ponto. Gerard Van der Leew (1964) enfatizou a vivência do religioso como um tema fundamental das pesquisas. Ela não seria algo captável em si, pois os sujeitos religiosos ao tentarem compreendê-la e explicá-la, retrabalham-na com as categorias lingüísticas disponíveis. Há um esforço de traduzibilidade para os códigos comuns do cotidiano. Sob a ordem também do logos é que tal vivência fica arquivada na memória, podendo ser reatualizada através das ações rituais.

O típico da experiência com o sagrado seria a sensação de um sentido último, profundo, para a vida e para os cosmos. Essa capacidade de significação é acompanhada da busca de poder, de controle sobre as circunstâncias da vida (Leew, 1964:650). Os limites do sentido requerem poder e o poder estabelece limites ao sentido. Tais fronteiras encontram-se no ato de transcendência.

A fenomenologia forneceu uma base para os estudos religiosos, contudo ela possui acentuada tendência ao idealismo. Uma história “religiosa” da religião deve ser cruzada com uma história naturalística (Griffin, 2000). Talvez, tivéssemos perdido menos tempo em debates estéreis, se escutássemos o conselho de Ernst Troeltsch, dado no início do século XX, quando propôs por método mesclar ambas perspectivas num “idealismo crítico” (1977:83).

Entendemos a expressão como uma radical historicização das concepções religiosas. Essa dimensão dinâmica da vida interage com outros fatores e compete cotidianamente com outros investimentos do sujeito (Certeau, 1985 e 1996). Mas, ao mesmo tempo, podemos encontrar um específico gerado no ato de crer: a plusificação (QUADROS, 2005). Algo a mais envolve o objeto de fé ou a doutrina religiosa. Esta característica é fundamental ao que comumente denominado de sagrado.

A modernidade goiana alterou concepções de sagrado tradicionais, mas entendemos que gerou recursos para sua própria viabilização. A rápida modernização do Estado gerou novas representações religiosas (campo cognitivo), direcionou expectativas (campo motivacional) e possibilitou práticas inovadoras (campo perfomático). Os sujeitos tiveram, também, na religiosidade um lugar para buscar seu empodaremento.

 


POPULISMO, FÉ E NAÇÃO

 

A bibliografia acerca do populismo é relativamente extensa, contudo as análises sobre o discurso religioso nesse regime político ainda é escasso. As tentativas de angariar o apoio da população e as expressões simbólicas da nacionalidade inauguradas com a Revolução de Trinta possuíam cores religiosas, mas esse aspecto não despertou a atenção dos investigadores. Por outro lado, a igreja católica havia sofrido o golpe da separação do Estado com a Primeira República e durante todo esse período permaneceu na tentativa reestruturação e reaproximação das elites. Um momento oportuno será a década de Trinta do século passado, quando uma nova forma de hegemonia social e política foi instaurada no Brasil.

Podemos chamar esse rearranjo nas relações entre os grupos sociais e políticos ainda de populismo? É verdade que já se falou no “colapso do populismo no Brasil” (IANNI, 1968). Essa era a interpretação majoritária da esquerda quando ocorreu o golpe civil-militar em 1964. A política populista iniciada com o governo de Getúlio Vargas teria terminado com a derrubada de João Goulart e uma nova forma da “burguesia internacional” exercer seu domínio teria iniciado com a ditadura militar instaurada. Não vamos discutir aqui os debates sobre esse recorte temporal, mas podemos lançar a suspeita de que a forma de fazer política na modernidade possui uma forte herança do populismo.

Nesta pesquisa, não pretendemos abordar todo esse período “clássico”, digamos assim, da política populista, mas principalmente seus primórdios. A Era Vargas teve seu paralelo em Goiás com o governo de Pedro Ludovico Teixeira, durante cerca de quinze anos após a Revolução de Trinta e retornando depois, igualmente, durante a década de cinqüenta. Os novos valores instaurados e a nova forma de pensar a governabilidade modificaram as estruturas da sociedade brasileira e goiana, ressalvando-se os aspectos locais a serem aprofundados. Portanto, investigar como a religiosidade se expressou nesse período é relevante, pois a população tinha nos ritos, crenças e símbolos religiosos uma forma privilegiada de manifestação e de construção da vida comunitária.

Essa questão da integração social e da unidade popular foi fundamental na época. O enfoque estatal estava voltado para a constituição da nacionalidade. Como se sabe, as análises de Benedict Anderson provocaram uma guinada nos estudos acerca da identidade nacional quando esse autor a definira como “uma comunidade politicamente imaginada” (1989, p.14). O ganho foi perceber a importância que as expressões culturais tinham no surgimento das nações, processo que caracteriza a história mundial dos últimos dois séculos. Apesar da importância dada à cultura, aos símbolos e aos sentimentos nessa análise, destacamos que a religiosidade permaneceu ausente de sua obra e da maioria de seus seguidores.

Assome-se que para a política populista ser exercida, essa unidade do “povo” exerce tanto a função de pressuposto quanto a de meta das ações. Poderíamos sugerir, inclusive, que foi o populismo que criou politicamente a categoria de povo, das massas ou dos “trabalhadores”, conceitos que englobavam as manifestações coletivas. Como colocou Ângela de Castro Gomes, os significados básicos do populismo envolvem:

 

1 – “... uma política de massas, vale dizer, um fenômeno vinculado à proletarização dos trabalhadores na sociedade complexa moderna, sendo indicativo que tais trabalhadores não adquiriram consciência e sentimento de classe”;

2 – “o populismo está igualmente associado a uma certa conformação da classe dirigente, que perdeu essa representatividade e poder de exemplaridade, deixando de criar os valores e estilos de vida orientadores de toda a sociedade”

3 – A unificação dos dois aspectos anteriores "pela mediação de um líder carismático" (GOMES, 2001, p.24-25)

 

Os três aspectos em destaque são importantes para entender como o “povo” emerge enquanto sujeito social e político no regime instaurado pela Revolução de Trinta. A igreja católica, em suas pastorais, está preocupada com a perda de prestígio das camadas dirigentes, com os novos movimentos que surgem entre os trabalhadores (a exemplo do comunismo) e também vê no surgimento dos líderes carismáticos importantes aliados para a reconstrução do domínio cultural e religioso. O exemplo a ser seguido será a Itália, onde a concordata com Mussolini resolveu uma série de problemas relativas ao Vaticano (AUBERT, 1976).

Então, há um campo de disputas nessa construção do “povo”, um conflito entre diferentes visões acerca do domínio da vontade popular e de suas manifestações. Simultaneamente, encontramos em nível nacional uma importante reaproximação do episcopado com o governo de Getúlio Vargas. Antes da vitória do movimento revolucionário, o bispo do Rio Grande do Sul, D. João Becker, já apoiava o programa da Aliança Liberal. Durante a campanha presidencial de Getulio, pregou um sermão afirmando que:

 

“Falta-nos na suprema direção da Pátria um novo Moisés que tenha a audácia cívica de escolher a Nosso Senhor Jesus Cristo para guia da Nação, que tenha coragem de restbelecer os direitos, os ensinamentos e as leis de Deus em todos os departamentos da sociedade brasileira. Quem o será? Como todos os estados, o Rio Grande do Sul tem o direito inconcusso, como o fez. Eu quisera, como todos os presentes o desejam, que este Moisés regenerador da República surgisse do meio do heróico povo Gaúcho...” (apud BEOZZO, 1995, p.287).

 

Temos neste pequeno trecho a imbricação de valores que estamos tentando demonstrar. Deus, a nação, o líder e as “leis de Deus” – no caso, da igreja Católica – estão intimamente relacionados e, com a penetração do catolicismo sobre as camadas populares, cremos que esse apoio será fundamental no novo regime político instaurado. Mas devemos deixar claro que esse apoio recíproco não ocorreu em todos os estados.

No caso de Goiás, houve divergências evidentes entre o interventor revolucionário, e depois governador, Pedro Ludovico e o bispo D. Emmanuel de Oliveira. Ronaldo Vaz chama-o de “bispo da Nova Cristandade”, entretanto não deixa de apontar a resistência clerical ao projeto da nova capital, como fora realizado. Goiânia foi projetada para ser uma cidade “secular” (1997, p.262). Proliferaram, na verdade, desde os anos trinta, as lojas maçônicas e as denominações protestantes. Tais manifestações também foram importantes, apesar da pesquisa acerca de sua influência ser um pouco mais dificultosa. Nesse projeto, buscaremos comparar principalmente a presença do protestantismo, relacionado classicamente com a modernidade (WEBER, 1997; TROELTSCH, 2005), e a estratégia do catolicismo para manter sua hegemonia sócio-cultural.  

Em 1970, Boris Fausto publicou uma obra onde fazia a avaliação da historiografia acerca do movimento revolucionário de 1930. Nela criticava as teorias “dualistas” ou “classistas”, que não dariam conta de captar o sentido do regime iniciado com Vargas (1997, p.11). A ruptura com a economia agrária, a aliança com a burguesia industrial emergente, a intervenção das classes médias ou a relevância dos grupos militares na Revolução são tratadas como exageros que, em última instância, tornaram-se mitos historiográficos.

Essas críticas, apesar de antigas, foram pouco incorporadas na historiografia goiana acerca do período governado por Pedro Ludovico. Um exemplo pode ser dado pela obra coletiva organizada por Dalva Borges de Souza, Goiás: Sociedade e Estado (SOUZA, 2004). Não queremos desmerecer, obviamente, os autores que ali escrevem, ou a contribuição que deram traçando um bom perfil histórico da política goiana no século XX. Mas queremos apontar certos termos que continuam a ser repetidos como se fossem claros e evidentes, a exemplo de oligarquias agrárias, coronelismo, classe ruralista, atraso, burguesia, capitalismo dependente, modernização industrial, interesses internacionais, etc. Eles são conceitos heurísticos que têm seu valor se matizados de acordo com a situação local e trabalhados de modo relacional. Além do mais, a maioria dos pesquisadores assume, direta ou indiretamente, a postura interpretativa do grupo que venceu, ou seja, o lugar de quem olha a história a partir de Goiânia e do impacto que gerou.

A igreja, mesmo enquanto instituição, pouco aparece na obra, o que também é resultado do referencial teórico-metodológico adotado pelos autores. Mas será que ela não contribui para a política estatal? Seus valores não estão presentes, de maneira característica, na sociedade goiana? O que buscamos nessa pesquisa é, destarte, revisitar o período dos anos trinta e quarenta inserindo a presença dos grupos religiosos na conjuntura social e política de Goiás. As crenças compõem a cultura política da época, assim como esta demarca o campo religioso. A fé não pode ser considerada somente um epifenômeno, um espelho da posição social, dando sentido as próprias relações sociais e posições de classe (CERTEAU, 1996). Na constituição dos sujeitos e na configuração das práticas significativas, todo um conjunto de interesses, tradições e projetos estão manifestos, estando as crenças geralmente presentes.

As análises sobre o populismo também pouco observaram a contribuição dada pelo discurso religioso. O livro organizado por Jorge Ferreira (2001) reúne especialistas no assunto e mesmo havendo certo destaque dado às expressões culturais e às estratégias de sociabilidade, a igreja permaneceu ausente. Outro exemplo advém do livro de Maria Helena Capelato, bastante inovador do ponto de vista temático e metodológico. Fala-se que os regimes Peronista e Varguista buscaram o apoio eclesiástico e que ambos se valiam de imagens religiosas em sua propaganda (1998, p.29), entretanto a temática não foi desenvolvida pela autora.

É o que pretendemos fazer. Mapeando como as representações religiosas da sociedade marcaram o discurso e a prática populista, esperamos contribuir para o melhor entendimento da época. De maneira complementar, estudaremos como as instituições religiosas se aproximaram, ou não, do regime instituído em Goiás com a Revolução de Trinta, com a criação de Goiânia e com os valores modernos irradiados pela nova capital.

 

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[1] Foi pincipalmente Weber que forneceu as bases da teoria da secularização defendendo “o grande processo histórico-religioso do desencantamento do mundo” (2004, p.96) como irrevogável.

[2] Uma resenha das principais ideias desses e de outros autores encontra-se na obra de Martelli (1995).

[3]Não vamos entrar aqui no debate acerca dos diferentes conceitos de modernidade. Definimo-la a partir do criador do termo, Baudelaire, que rompendo tanto com a nostalgia romântica quanto com o otimismo iluminista, expressava com essa palavra o sentimento generalizado de ruptura com o passado, valorizando positivamente o atual e o presente como uma melhora decisiva. Cf. Gagnebin (1997, p.143).

[4]Seguindo Bourdieu, entendemos campo religioso como "a constituição de instâncias especificamente organizadas com vistas a produção, a reprodução e a difusão de bens religiosos" (1973, p.37). Ele é resultado da "estrutura de distribuição do capital de autoridade propriamente religiosa, (onde) as diferentes instâncias religiosas, indivíduos ou instituições podem lançar mão do capital religioso na concorrência pelo monopólio da gestão de bens de salvação, enquanto poder de modificar em bases duradouras, as representações e as práticas dos leigos, inculcando-lhes um habitus religioso..." (id., p.57). Esta perspectiva ao mesmo tempo sistêmica e conflitiva é importante para os objetivos da pesquisa.

[5]O direito ao Padroado foi estabelecido pelo Tratado de Tordesilhas, ainda antes da conquista do território brasileiro. Através dele, o governo possuía alto grau de poder administrativo sobre a igreja. Após a independência, esse direito foi adquirido em Roma e só foi extinto com o fim da monarquia, apesar dos protestos eclesiásticos. A nosso ver, a reconfiguração das forças teo-políticas (QUADROS, 2009) é importante dentro da problemática que pretendemos investigar.

[6]O forte conflito da Igreja Católica com a maçonaria é representado pela obra de Cônego Trindade, Lugares e Pessoas (SILVA, 1948), que em um livro de história eclesiástica dedica diversas páginas transcrevendo as condenações do magistério eclesiásticos aos maçons. 

 

 

 

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