BLOG ESPIRITUALIDADE E RELIGIOSIDADE. AUTOR: ÁLAZE GABRIEL GIFTED.
Disponível em http://espiritualidade-e-religiosidade.blogspot.com.br
Autoria:
1 - Raquel Gehrke Panzini. Psicóloga, doutoranda em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e mestra em Psicologia pela UFRGS.
2 - Neusa Sicca da Rocha. Psiquiatra, mestra e doutoranda em
Psiquiatria pela UFRGS.
3 - Denise Ruschel Bandeira. Psicóloga, doutora em Psicologia pela UFRGS
e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia na UFRGS.
4 - Marcelo Pio de Almeida Fleck. Psiquiatra, doutor em Medicina pela
UFRGS e coordenador do Grupo WHOQOL no Brasil.
Adaptação:
Superdotado
Álaze Gabriel. Atualmente Operador de Processamento de Dados, Blogger e Escritor.
QUALIDADE DE VIDA E ESPIRITUALIDADE
RESUMO
CONTEXTO: A espiritualidade tem sido apontada como uma
importante dimensão da qualidade de vida.
OBJETIVO: Apresentar revisão de literatura sobre qualidade de
vida e espiritualidade, sua associação e instrumentos de avaliação.
MÉTODO: Busca do tema-título nas bases de dados PsycINFO e
PubMed/Medline entre 1979 e 2005.
RESULTADOS: A qualidade de vida é um conceito recente, que
engloba e transcende o conceito de saúde, sendo composto de vários domínios ou
dimensões: física, psicológica, ambiental, entre outras. Considerada a medida
que faltava na área da saúde, tem sido definida como a percepção do indivíduo de
sua posição na vida no contexto da cultura e sistema de valores nos quais vive
e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações. Há
indícios consistentes de associação entre qualidade de vida e
espiritualidade/religiosidade, por meio de estudos com razoável rigor
metodológico, utilizando diversas variáveis para avaliar espiritualidade (por
exemplo: afiliação religiosa, oração e coping religioso/espiritual).
Também existem vários instrumentos de qualidade de vida válidos e fidedignos que
avaliam a dimensão espiritual/religiosa.
CONCLUSÕES: Novos estudos são necessários, entretanto,
especialmente no Brasil. Tais estudos proverão dados empíricos a serem
utilizados no planejamento de intervenções em saúde espiritualmente embasados,
visando a uma melhor qualidade de vida.
INTRODUÇÃO
Existe abundância de dados sobre o impacto da
religião na vida das pessoas (Levin e Vanderpool, 1991). Apesar disso, enquanto
a medicina oriental busca integrar de forma explícita a dimensão
religiosa/espiritual ao binômio saúde-doença (Fabrega, 2000), a medicina
ocidental como um todo, especialmente a psiquiatria, vinha tendo duas posturas
principais em relação ao tema: negligência, por considerar esses assuntos sem
importância ou fora da área de interesse principal; ou oposição, ao
caracterizar as experiências religiosas dos pacientes como evidência de
psicopatologias diversas (Sims, 1994). Historicamente ignorada por muitos
psicólogos, a religião foi denominada por Larson e Larson o fator esquecido
na saúde física e mental (Pargament et al., 1992). Nas últimas
décadas, entretanto, este panorama tem se modificado em função do que Saad et
al. (2001) nomearam espiritualidade baseada em evidências:
atualmente existem centenas de artigos científicos mostrando uma associação
entre espiritualidade/religião e saúde que é estatisticamente válida e
possivelmente causal (Levin, 1994). Assim, os profissionais da saúde possuem
indicações científicas do benefício da exploração da espiritualidade na
programação terapêutica de virtualmente qualquer doença. A parede entre
medicina e espiritualidade está ruindo: médicos e demais profissionais de saúde
têm descoberto a importância da prece, da espiritualidade e da participação
religiosa na melhora da saúde física e mental, bem como para responder a
situações estressantes de vida (Epperly, 2000).
Mais recentemente, vem havendo uma preocupação com
o estabelecimento de parâmetros mais amplos de avaliação de saúde que não
apenas a morbimortalidade. Neste contexto, o interesse no desenvolvimento de
medidas de desfecho como "bem-estar" e "qualidade de vida"
tem tido notável crescimento (Fleck, no prelo), e indícios de associação com
espiritualidade/religiosidade têm sido encontradas.
Neste artigo, serão revisados os conceitos e as
possíveis relações entre espiritualidade/religiosidade e qualidade de vida, e
sua aplicação na área da saúde, por meio da revisão de estudos científicos no
tema-título obtidos das bases de dados PsycINFO e PubMed/Medline datados entre
1979 e 2005. Os artigos foram selecionados segundo a sua relevância científica
e o objetivo de fornecer amplo panorama sobre qualidade de vida e
espiritualidade em termos de conceitos, pesquisas e instrumentos.
CONCEITOS RELIGIOSOS/ESPIRITUAIS
Os conceitos religiosos/espirituais não são
consensuais. O Dicionário Oxford (Simpson e Weiner, 1989) define
espírito como a parte imaterial, intelectual ou moral do homem. O termo
espiritualidade envolve questões quanto ao significado da vida e à razão de
viver, não limitado a tipos de crenças ou práticas. A religião é a "crença
na existência de um poder sobrenatural, criador e controlador do Universo, que
deu ao homem uma natureza espiritual que continua a existir depois da morte de
seu corpo". Religiosidade é a extensão na qual um indivíduo acredita,
segue e pratica uma religião. Embora haja sobreposição entre espiritualidade e
religiosidade, a última difere-se pela clara sugestão de um sistema de
adoração/doutrina específica partilhada com um grupo.
Crenças pessoais podem ser quaisquer crenças/valores
sustentados por um indivíduo e que caracterizam seu estilo de vida e
comportamento. Pode haver sobreposição com espiritualidade, pois crenças
pessoais não necessariamente são de natureza não-material, como o ateísmo.
Complementando, Koenig et al. (2001) salientam a relação dos termos com
a busca do sagrado, definindo religião como um sistema organizado de crenças,
práticas, rituais e símbolos delineados para facilitar a proximidade com o
sagrado e o transcendente (Deus, Poder Maior ou Verdade/Realidade Final/Máxima)
e espiritualidade como a busca pessoal por respostas compreensíveis para
questões existenciais sobre a vida, seu significado e a relação com o sagrado
ou transcendente que podem (ou não) levar a ou resultar do desenvolvimento de rituais
religiosos e formação de uma comunidade.
CONCEITO DE QUALIDADE DE VIDA
A introdução do conceito de qualidade de vida (QV)
como medida de desfecho em saúde surgiu a partir da década de 1970, no contexto
do progresso da medicina. Este trouxe um prolongamento na expectativa de vida,
na medida em que doenças anteriormente letais (por exemplo, infecções) passaram
a ser curáveis ou a ter, pelo menos, controle dos sintomas ou retardo no seu
curso natural. Assim, esse prolongamento se dá à custa do convívio com formas
abrandadas ou assintomáticas das doenças. Passou a ser de grande importância,
então, dispor de maneiras de mensurar a forma como as pessoas vivem esses anos
a mais. De fato, Fallowfield (1990) definiu a QV como "a medida que
faltava na área da saúde".
A QV possui intersecções com vários conceitos
eminentemente biológicos e funcionais, como status de saúde, status funcional
e incapacidade/deficiência; sociais e psicológicos, como bem-estar, satisfação
e felicidade; e de origem econômica baseada na teoria "preferência" (utility).
Entretanto, seu aspecto mais genérico (saúde é apenas um de seus domínios) tem
sido apontado como seu grande diferencial e sua particular importância (Fleck,
no prelo).
Seis grandes vertentes convergiram para o
desenvolvimento do conceito de QV: 1) os estudos de base epidemiológica sobre
felicidade e bem-estar; 2) a busca de indicadores sociais; 3) a insuficiência
das medidas objetivas de desfecho em saúde; 4) a "satisfação do
cliente"; 5) o movimento de humanização da medicina; e, 6) a psicologia
positiva. Esta última insere-se na atual tendência para o desenvolvimento da
pesquisa dos aspectos positivos da experiência humana, e a pesquisa em QV está
em sintonia com a busca de estudar variáveis positivas da vida humana (Seligman
e Csikszentmihalyi, 2000). Apoiado pelo conceito amplo da Organização Mundial
da Saúde (OMS, 1946) de que saúde é "um estado de completo bem-estar
físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade",
o foco exclusivo na doença, que sempre dominou a pesquisa na área da saúde, vem
cedendo espaço ao estudo das características adaptativas, como resiliência,
esperança, sabedoria, criatividade, coragem e espiritualidade. Assim, podemos
ver que religiosidade, espiritualidade e crenças pessoais não são temas alheios
ao conceito de QV, sendo, na verdade, uma de suas dimensões.
Ainda não há consenso definitivo na literatura
sobre o conceito de qualidade de vida. Entretanto, é importante ressaltar a
distinção entre os conceitos de padrão de vida e QV (Skevington, 2002). O
primeiro compreende indicadores globais das características relevantes do modo
de viver das sociedades e indivíduos, em termos socioeconômicos, demográficos e
de cuidados básicos de saúde disponíveis. O segundo baseia-se em parâmetros que
se referem à percepção subjetiva dos aspectos importantes da vida de uma
pessoa, os quais podem ou não coincidir com indicadores de padrão de vida. O
Grupo de Avaliação da Qualidade de Vida da Divisão de Saúde Mental da OMS
(Grupo WHOQOL) propôs que essas percepções se originam na cultura à qual a
pessoa pertence. Por isso, a questão cultural é fundamental na QV, já que
diferentes culturas tendem a priorizar diferentes aspectos. O Grupo WHOQOL pode
ter sido o primeiro a incluir na definição de QV o componente cultural como
parte integrante e fundamental, em vez de tratar sua influência como uma
variável não relacionada. Esse grupo é uma colaboração entre pesquisadores,
clínicos e cientistas que vêm trabalhando juntos há mais de 12 anos com base em
protocolos internacionais consensuais, desenvolvidos de comum acordo a cada
estágio de desenvolvimento do projeto (Skevington, 2002). A partir de uma
perspectiva transcultural, esse grupo definiu qualidade de vida como "a
percepção do indivíduo de sua posição na vida no contexto da cultura e sistema
de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas,
padrões e preocupações" (WHOQOL Group, 1994) – uma das definições
mais utilizadas atualmente.
GRUPOS DE PESQUISADORES EM QV
Além do Grupo WHOQOL, pesquisadores independentes e
outros grupos de pesquisadores, subsidiados por diferentes instituições, também
têm estudado QV por todo o mundo, como o IQOLA (International Society for
Quality of Life Assessment) e o grupo1
de pesquisadores que construiu o SEIQOL (The Schedule for the Evaluation of
Individual Quality of Life) (Beaton et al., 2000; Skevington, 2002).
Esses grupos têm diferentes perspectivas quanto à universalidade ou
relatividade do conceito de QV, refletindo-se em abordagens objetivas ou
subjetivas, respectivamente, na construção de instrumentos de avaliação da QV.
A visão universal foi apoiada pelos dados coletados
pelo Grupo IQOLA, segundo o alto grau de similaridade encontrado entre os
perfis do instrumento SF-36 provindos de quatro países europeus, e pelos dados
coletados ao redor do mundo pelo Grupo WHOQOL, por meio dos instrumentos WHOQOL-100
e WHOQOL-bref. A visão relativa utiliza-se de uma abordagem ideográfica que
procura entender o indivíduo como um ser único, considerando as muitas
diferenças individuais entre as pessoas mais importantes que suas
similaridades. Instrumentos como SEIQOL e SEIQOL-DW (McGee et al., 1991;
Browne et al., 1997) acessam QV individualmente mediante entrevista
semi-estruturada, em estudos com grupos particularizados, como indivíduos
sofrendo de uma mesma doença (Waldron, 1999). Embora tenham demonstrado boa
aceitabilidade e fidedignidade, são inapropriados para algumas populações, como
idosos ou pacientes severamente doentes, por requerer um processamento de
informação abstrato complexo (Povey, 2002). Já Bullinger (apud Skevington,
2002) salienta que dimensões que incluem tanto escalas genéricas quanto
específicas de QV (domínios) demonstraram alto grau de correspondência entre
diferentes instrumentos, permitindo revelar muitas diferenças entre culturas e
entre indivíduos. Assim, a abordagem universal permitiria salientar tanto
similaridades quanto diferenças no conceito de QV entre os povos.
Tal debate tem raízes na escolha e utilização de
diferentes metodologias e técnicas de análise de dados, e sua questão-chave
centra-se na possibilidade ou não de realizar medidas transculturais de QV
(Skevington, 2002). A importância desse tipo de medida sobressai porque, por
meio delas, é possível compartilhar resultados oriundos do mundo todo quanto
aos tratamentos clínicos realizados e viabiliza a comparação de QV em diferentes
culturas ou grupos sociais, permitindo verificar a universalidade ou não do
conceito de QV, contribuindo ao debate.
PESQUISAS RELACIONANDO QV E
ESPIRITUALIDADE/RELIGIOSIDADE
Vários estudos têm enfocado a relação entre QV e
diversas variáveis religiosas/espirituais. Ferriss (2002) examinou a relação
entre religião e QV por meio de indicadores objetivos e subjetivos de QV.
Encontrou a variável felicidade associada à freqüência/presença em serviços
religiosos, a preferências proselitistas e a preferências doutrinárias, bem
como a certas crenças relacionadas à religião, como a crença de que o mundo é
bom ou mau, mas não à crença na imortalidade. O autor concluiu que: 1)
organizações religiosas contribuem para a integração da comunidade,
conseqüentemente aumentando a QV; 2) como a freqüência/presença em serviços
religiosos esteve imperfeitamente associada com QV, outros fatores deveriam
estar atuando; 3) a concepção americana de "vida boa" se baseia
fortemente em ideais judaico-cristãos; 4) os princípios da religião podem
atrair pessoas com disposição para a felicidade; 5) a religião pode explicar um
propósito na vida que promova bem-estar. Indícios de associação positiva
significativa entre QV e bem-estar espiritual foram encontrados em diferentes
populações: em amostra multiétnica de 1.617 participantes (idade µ = 54,6
anos), quando do desenvolvimento e da validação do instrumento FACIT-Sp (The
Functional Assessment of Chronic Illness Therapy-Spiritual Well-Being Scale)
(Peterman et al., 2002) e em amostra de pacientes oncológicos,
independentemente do tipo de neoplasia (Cella et al., 1999). Ainda,
pacientes com variados tipos de neoplasias ginecológicas mostraram relação
positiva entre QV e bem-estar espiritual, existencial e religioso (Gioiella et
al., 1998).
Outro estudo confirmou que qualidade de vida em
indivíduos HIV positivos (n = 40, 80% homens; 25-54 anos) estava diretamente
relacionada a fé religiosa, afiliação religiosa e estado de saúde, que, com
nível socioeconômico, contribuíam positiva e significativamente para os escores
de QV dos participantes no Quality of Life Index (qli). Variáveis independentes
como idade, etnia e gênero não contribuíram para o modelo de regressão
(Flannelly e Inouye, 2001). Em uma pesquisa com 44 viúvas de vítimas de incêndio
(idade µ = 37 anos), a maioria das que se descreveu como mais religiosas
relatou QV mais estável nos últimos cinco anos após a morte dos maridos.
Freqüência religiosa, participação em eventos sociais e ser membro de alguma
instituição religiosa também estiveram ligados à maior estabilidade na QV (Bahr
e Harvey, 1979). Em um estudo com 560 pessoas aleatoriamente entrevistadas por
telefone, para além da freqüência de oração, que não se revelou bom indicador,
os aspectos qualitativos da reza e a forma de rezar foram as variáveis que
apresentaram maior efeito sobre a QV (Paloma e Pendleton, 1989).
Uma variável que tem se mostrado associada à QV é o
coping religioso/espiritual (CRE): uso da religião, espiritualidade ou
fé para lidar com o estresse e os problemas de vida. Utilizando um índice
global de QV (cinco itens graduados pelo observador/pesquisador em escala
Likert de 3 pontos) (Spitzer et al., 1981), Pargament et al.
(1998) verificaram que, em uma amostra que contou com 551 idosos hospitalizados
gravemente doentes, 256 pessoas vítimas do ataque de bomba em Oklahoma e 540
universitários que haviam sofrido eventos de vida estressantes, maior
utilização de CRE positivo não se correlacionou com QV nem depressão. No
entanto, maior utilização do CRE negativo correlacionou-se moderadamente com
níveis piores de QV e maiores de depressão. Os autores concluíram que a
religião/espiritualidade pode ser fonte de alívio ou desconforto, de solução de
problemas ou causa de estresse, dependendo de como a pessoa se relaciona com
ela, ou seja, se utiliza estratégias de CRE positivo ou negativo. No
acompanhamento de dois anos da amostra dos idosos hospitalizados deste estudo,
com 268 respondentes (29,5% mortos, 25,5% perda), o CRE foi preditor de
resultados espirituais e mudanças na saúde mental/física. O CRE positivo esteve
associado com melhoras na saúde e o CRE negativo foi preditor retrospectivo de
declínio na saúde: desfechos (outcome) espirituais limitados, pior status
funcional em atividades de vida diária, maior depressão e menor QV. Os autores
concluíram que pacientes debatendo-se continuamente com questões religiosas
podem estar particularmente em risco para problemas de saúde (Pargament et
al., 2001), em função do uso de CRE negativo.
Utilizando a mesma medida de QV do estudo anterior,
uma Brief RCOPE de 63 itens para medir CRE e uma forma abreviada de 22
itens da escala COPE (Carver et al., 1989) para avaliar coping
não-religioso, Koenig et al. (1998) estudaram uma amostra com 577
pacientes acima de 55 anos. Com relação à saúde física, maior uso de coping,
religioso ou não, esteve associado à pior saúde física. Essa associação foi
mais forte e freqüente para o CRE negativo do que para o positivo, bem como
para as estratégias de coping não-religioso menos saudáveis, como
negação e comportamento desengajado. Aceitação foi o único coping
não-religioso associado à melhor saúde física. Freqüência religiosa também
esteve consistentemente associada à melhor saúde física. Em relação à saúde
mental, estiveram associados a menor depressão e maior QV cinco estratégias de
CRE positivo, freqüência religiosa e duas estratégias de coping
não-religioso mais saudáveis/positivas: aceitação e receber suporte
social/emocional. Associadas a maior depressão e pior QV esteve a maioria das
estratégias de CRE negativo (8 de 9) e as estratégias de coping
não-religioso menos saudáveis/negativas: comportamento desengajado, negação,
uso de álcool e drogas. Todas as 12 estratégias de CRE positivo, freqüência
religiosa, importância da religião e atividades religiosas privativas estiveram
robustamente associadas a crescimento associado ao estresse, cooperatividade e
crescimento espiritual. Estratégias de CRE negativo apresentaram associações
menos freqüentes, mais fracas, menos consistentes e ocasionalmente negativas
com essas variáveis.
Estudo longitudinal sobre uso de instrumentos de QV
para prever hospitalização e mortalidade em pacientes com doença pulmonar
obstrutiva apontou que QV baixa seria um poderoso preditor de hospitalização e
todas as causas de mortalidade, indicando que instrumentos auto-administráveis
e breves poderiam identificar pacientes que poderiam beneficiar-se de
intervenções preventivas (Fan et al., 2002). Se esses instrumentos
fossem elaborados e/ou utilizados dentro de uma perspectiva transcultural,
poderiam ainda viabilizar comparações entre diferentes grupos sociais,
culturais ou diferentes condições/contextos de atendimento à saúde, informações
importantes para políticas públicas no combate às epidemias (por exemplo, de HIV),
em que diferentes grupos culturais necessitam de avaliação de QV no contexto de
atendimento voluntário ou profissional, como testagem e aconselhamento
(Skevington, 2002).
INSTRUMENTOS DE QV QUE AVALIAM ASPECTOS
ESPIRITUAIS/RELIGIOSOS
Vários estudos têm apontado a importância da
religião/espiritualidade na qualidade de vida. Por exemplo, pacientes com
tuberculose, antes que seus médicos, indicaram o aumento da espiritualidade
como importante fator de QV resultante de sua doença e/ou tratamento (Hansel et
al., 2004). Tais achados levaram aos instrumentos de QV genéricos (WHOQOL
Group, 1998; Fleck et al., 1999), de QVRS (Peterman et al., 2002)
e de QV relacionada a alguma doença específica (Zebrack e Chesler, 2001) a
apresentarem/incluírem uma dimensão espiritual entre seus domínios.
Ross (1995) definiu a dimensão espiritual como
dependendo de três componentes, revelados nas necessidades de encontrar
significado, razão e preenchimento na vida; de ter esperança/vontade para
viver; e de ter fé em si mesmo, nos outros ou em Deus. A primeira necessidade,
apontada por Pargament (1997) como um dos objetivos-chave da religião e do CRE,
é considerada uma condição essencial à vida, pois quando um indivíduo se sente
incapaz de encontrar um significado, ele sofre em função de sentimentos de
vazio e desespero (Ross, 1995). De fato, o sofrimento espiritual não
identificado freqüentemente é o culpado em um plano terapêutico malsucedido na
reabilitação de deficiências físicas (Davis, 1994). Em um estudo com 10 mulheres
com câncer e cinco homens com síndrome de imunodeficiência adquirida, aqueles
que encontraram um significado para sua doença também apresentaram melhor QV.
Eles definiram a dimensão espiritual como uma composição de três conceitos
principais: crença em uma força superior, reconhecimento da mortalidade e
atualização do eu (amor próprio + aceitação + encontrar significado na vida/na
doença) (Fryback e Reinert, 1999).
A importância da dimensão espiritual/religiosa na
QV e nas medidas de QV foi destacada por Robbins et al. (2001). Em
estudo longitudinal com 60 pacientes com esclerose lateral amiotrófica (ELA),
examinaram a relação entre função física, QV e espiritualidade/religiosidade, e
sua variação no tempo (linha base, três e seis meses). Escalas específicas de
QV e passagem de tempo foram fatores preditores da QV dos pacientes. Apesar do
progressivo declínio na função física, os escores gerais de QV e religiosidade
pouco mudaram. Em contraste, o escore de QVRS específico para ELA diminuiu
paralelamente ao declínio nos escores de função física, indicando que este
seria primariamente uma medida dessa função. Os autores concluíram que a QV em
pacientes com ELA parece ser independente da função física e instrumentos de QV
que incluem a avaliação de fatores espirituais, religiosos e psicológicos
produzem resultados diferentes em relação àqueles obtidos usando somente
medidas do funcionamento físico.
À mesma conclusão sobre a importância da dimensão
religiosa/espiritual na QV chegou o Grupo WHOQOL, quando organizou grupos
focais por todo o mundo em 1991 e os participantes afirmaram que
espiritualidade/religião/crenças pessoais eram variáveis importantes em sua QV
e saúde (Skevington, 2002). Embora, desde a Assembléia Mundial de Saúde de
1983, a inclusão de uma dimensão não-material ou espiritual de saúde venha
sendo discutida extensamente a ponto de haver uma proposta para modificar o
conceito clássico de saúde da OMS para "um estado dinâmico completo de
bem-estar físico, mental, espiritual e social e não meramente a ausência de
doença" (WHO/MAS/MHP/98.2, 1998), essas variáveis não faziam parte da
estrutura original do instrumento. Foram então incluídas quatro questões2,
compondo o domínio espiritualidade, religiosidade e crenças pessoais (SRPB),
que se uniu aos cinco já existentes (físico, psicológico, relações pessoais,
meio ambiente e nível de independência), completando o WHOQOL-100 (100 itens,
24 facetas, 6 domínios). Mesmo assim, o domínio SRPB ainda era limitado, tendo
se mostrado insuficiente nos testes de campo realizados em vários centros para
cobrir uma área tão abrangente e complexa, mas, por razões pragmáticas, não foi
possível desenvolvê-las mais nesse instrumento (Skevington, 2002). Salienta-se
que o WHOQOL-bref, a versão abreviada desse instrumento, não contém os domínios
nível de independência nem espiritualidade, mas contém um item de cada faceta
componente destes alocados nos domínios físico e psicológico, respectivamente.
Para cobrir tal lacuna, o Grupo WHOQOL desenvolveu
transculturalmente o Módulo Espiritualidade, Religiosidade e Crenças Pessoais
(WHOQOL-SRPB), uma expansão do domínio SRPB do WHOQOL-100 (WHOQOL SRPB Group, 2005;
Fleck et al., 2003). Esse instrumento vem sendo desenvolvido de forma
colaborativa entre diversos centros da OMS, selecionados em países com
diferentes níveis de industrialização e disponibilidade de serviços de saúde,
por meio de uma série de etapas – sempre utilizando método de tradução
interativo para garantir equivalência conceitual e semântica. Inicialmente, um
grupo internacional de experts sugeriu facetas e itens relacionados à
SRPB, os quais foram revisados por 92 grupos focais realizados em 15 países, em
quatro continentes: Argentina, Brasil, Uruguai, Itália, Espanha, Lituânia,
Turquia, Reino Unido, Egito, Israel, Índia, China, Japão, Tailândia e Malásia.
Estes objetivavam revisar a importância e as definições das facetas e sugerir
itens e/ou facetas para inclusão no questionário. Foram compostos por
profissionais de saúde (independentemente de suas crenças); pessoas com doenças
agudas, crônicas e terminais; pacientes que se recuperaram de doenças; ateus e
membros da religião dominante em cada centro e de grupos religiosos
minoritários.
Com base nos dados qualitativos e quantitativos dos
níveis de importância, um total de 15 facetas representadas por 105 itens foi
confirmado como relevante pelo Grupo WHOQOL-SRPB, em Genebra, e liberado para
teste-piloto, aplicado em 18 centros (n = 5.087) [Argentina (n = 221), Brasil
(Porto Alegre, n = 253; Santa Maria, n = 253), Uruguai (n = 251), Itália (n =
376), Espanha (n = 240), Lituânia (n = 482), Turquia (n = 240), Reino Unido (n
= 283), Egito (n = 240), Quênia (n = 480), Israel (n = 270), Índia (Bangalore,
n = 240; Pondicherry, n = 364), China (n = 259), Japão (n = 226), Tailândia (n
= 118) e Malásia (n = 240)], com o WHOQOL-100. Análises fatoriais e de
correlação interitens, entre outras, foram conduzidas e o total de oito facetas
foi selecionado (Conexão/Ligação a Ser ou Força Espiritual, Significado/Sentido
de Vida, Admiração, Totalidade e Integração, Força Espiritual, Paz Interior,
Esperança e Otimismo, Fé), representadas por 32 itens, com resposta em escala
Likert-5 pontos (Rocha et al., no prelo). Atualmente, o teste de campo
para validação do WHOQOL-SRPB está sendo realizado em seis países: Uruguai,
Espanha, Inglaterra, Israel, China e também no Brasil (Panzini, 2005). Os
resultados desta última fase gerarão a versão final do instrumento.
Recentemente, comentando o artigo do WHOQOL-SRPB
Group (2005), Moreira-Almeida e Koenig (2006) levantaram a questão de que cinco
fatores do WHOQOL-SRPB (Significado/Sentido na Vida, Admiração, Totalidade e
Integração, Paz Interior e Esperança e Otimismo) não seriam medidas de religião
nem espiritualidade propriamente ditas, mas medidas de resultados ou
conseqüências de religiosidade. Em função disso, a WHOQOL-SRPB e escalas como a
FACIT-Sp e a Escala de Bem-Estar Espiritual, em que tal fato se repetiria,
correriam o risco de estar sempre relacionadas à saúde mental por definirem
espiritualidade por traços ou características humanas positivas. Além disso,
assinalaram que mesmo as outras três facetas "com uma conexão mais direta
à espiritualidade" (Conexão/Ligação a Ser ou Força Espiritual, Força
Espiritual e Fé) poderiam não refletir nenhum tipo de espiritualidade já que,
pelas instruções, a pessoa poderia responder segundo um sistema pessoal de
crenças que não fosse religioso nem espiritual. Como indício a favor de seu
argumento, ressaltaram que as últimas três facetas foram justamente as que
tiveram maiores escores entre os participantes que estavam doentes,
representando o voltar-se à religião para o coping com a doença, e que o
grupo focal de pacientes brasileiros sugeriu que fossem eliminadas questões sem
clara relação com religiosidade – embora ateus e profissionais da saúde tenham
criticado questões com conotação religiosa.
Revisando tal comentário, salientam-se alguns
aspectos. Primeiro, o WHOQOL-SRPB é um instrumento de medida de qualidade de
vida antes que de espiritualidade/religiosidade. Mede QV no que esta se
relaciona com religião/espiritualidade e mede, também, QV relacionada a crenças
pessoais, que podem ou não ser espirituais/religiosas. Assim, propicia que
pessoas não-religiosas, nem espiritualizadas, respondam ao instrumento pelo
fato de possuírem, em geral, um princípio ou filosofia de vida, muitas vezes
baseado em código mora/ético ou na fé em algo (por exemplo, na ciência), que
fortemente embasa/estrutura suas vidas – similarmente ao que pode fazer a
religião/espiritualidade. Entende-se que a fé é "a confiança que se tem na
realização de alguma coisa, a certeza de atingir determinado fim" (Kardec,
1996, p. 300), em suma, é acreditar, e isto pode manifestar-se no ser humano de
diferentes formas. Segundo, o tema do fator Significado/Sentido de Vida é
citado por Pargament (1997) como um dos objetivos-chave da religião, ao qual
este dedica vários fatores de sua escala de coping religioso/espiritual,
a RCOPE (Pargament et al., 2000), envolvendo, portanto, a relação com o
sagrado e o transcendente – definição de espiritualidade citada por
Moreira-Almeida e Koenig (2006). Terceiro, um indício de que os fatores do WHOQOL-SRPB
medem algo além ou diferente do que apenas características humanas positivas
está no fato de que, na análise fatorial conjunta com o WHOQOL-100 (WHOQOL SRPB
Group, 2005), os fatores SRPB da dimensão espiritual carregaram em dimensão
separada da dimensão psicológica, bem como de todas as outras dimensões daquele
instrumento. Por fim, ressalta-se que o WHOQOL-SRPB é uma iniciativa pioneira
por medir uma dimensão que não é rotineiramente avaliada em instrumentos de QV
genérica, conforme se salientou no artigo original e no comentário.
Além do WHOQOL-100 e do WHOQOL-SRPB, outros
instrumentos de QV também apresentam dimensões espirituais/religiosas. O
Quality of Life-Cancer Survivors (QOL-CS) possui uma subescala de bem-estar
espiritual, além das subescalas de bem-estar físico, psicológico e social que,
com dois subcomponentes (medos e angústias), completam essa escala visual
analógica de 41 itens. Suas propriedades psicométricas foram exploradas em
amostra de 177 crianças sobreviventes de câncer, de 16 a 29 anos (Zebrack e
Chesler, 2001), tendo demonstrado boa consistência interna, validade
concorrente e discriminante (grupos definidos por estado de saúde e nível
social). Os autores concluíram que o instrumento mede domínios relevantes e
distintos da QV para crianças sobreviventes de câncer, embora tenham sugerido
que certas mudanças melhorariam a medida para essa população. Já o
Self-Perception and Relationships Tool (S-PRT), uma medida subjetiva de QVRS
validada em amostra clínica (pacientes psiquiátricos, cardiológicos,
nefrológicos, oncológicos, com distúrbios do sono ou dor pélvica crônica),
possui 36 itens dispostos em cinco fatores/domínios: Bem-estar Intrapessoal
(físico, mental e emocional), Receptividade Interpessoal, Contribuição
Interpessoal, Receptividade Transpessoal e Orientação Transpessoal. Os dois
últimos são escalas/dimensões espirituais concernentes a características ou
sentimentos ante a crenças e princípios universais ou à presença divina
(Atkinson et al., 2004).
PESQUISAS BRASILEIRAS ENVOLVENDO QV,
ESPIRITUALIDADE E CRE
Embora a religiosidade seja um componente
reconhecidamente importante na cultura brasileira, existem relativamente poucos
estudos voltados para o seu impacto na qualidade de vida e suas relações com a
saúde. A título de exemplo, serão descritas duas pesquisas investigando a
relação entre QV e espiritualidade/religiosidade, realizadas no Rio Grande do
Sul por atuais integrantes do grupo WHOQOL do Brasil (Panzini et al., no
prelo). Artigos e resumos sobre essas pesquisas encontram-se indexados nas
bases de dados PsychINFO, Scielo e Bireme/BVS.
Em 2002, realizou-se um estudo transversal
controlado (Rocha, 2002) com o objetivo de verificar a associação entre
qualidade de vida, estado de saúde e níveis de espiritualidade, religiosidade e
crenças pessoais (SRPB). Participaram da pesquisa 122 pacientes hospitalizados
(54,1% homens; idade, µ = 45,15 ± 15,54; anos de estudo = 8,93 ± 3,99; 46,7%
casados; 73,1% católicos) e 119 indivíduos saudáveis da comunidade (50,4% homens;
idade, µ = 39,38 ± 15,3; anos de estudo = 13,13 ± 6,58; 44,5% casados; 71,4%
católicos). Cada participante (n = 241) respondeu aos instrumentos: Inventário
de Depressão de Beck (BDI), Inventário de Desesperança de Beck (BHS),
WHOQOL-100 e WHOQOL-SRPBi (Escala de importância dada às facetas do
WHOQOL-SRPB, usada no teste-piloto). A amostra foi pareada por sexo, idade e
religião. Testes t de Student para amostras independentes demonstraram
que os escores médios do BDI foram mais altos para os pacientes (10,55 ± 8,46),
em comparação aos doentes (5,54 ± 5,68; p < 0,0001). O mesmo ocorreu
para os escores médios do BHS: 3,68 ± 3,16 e 2,76 ± 2,65 (p < 0,007),
respectivamente. Quanto ao WHOQOL-100, os pacientes demonstraram piores escores
de QV do que os indivíduos saudáveis com diferença significativa em todos os
domínios, exceto no domínio SRPB, no qual os pacientes apresentaram uma média
um pouco maior, estatisticamente não-significativa (Tabela
1). Os dados são compatíveis com a literatura, que mostra maior uso da
religião/espiritualidade em situações de enfrentamento (coping) de
doenças (Pargament e Hahn, 1986; Siegel et al., 2001; Tix e Fraizer,
1998). Assim, a presença de uma doença pode estar associada à piora na maioria
dos domínios de QV, exceto no domínio SRPB.
Já a média dos pacientes no WHOQOL-SRPBi
(96,9) foi mais alta comparada à média dos saudáveis (92,9; p <
0,03). Após regressão múltipla, incluindo nível socioeconômico (NSE), essa
diferença deixou de ser significativa, indicando que, apesar da pequena
tendência de os indivíduos pacientes darem mais importância à dimensão
espiritual/religiosa, os indivíduos saudáveis também a valorizaram bastante,
considerando que a pontuação máxima é 100. Todavia, essa diferença poderia
estar subestimada neste estudo, já que os indivíduos saudáveis eram membros
praticantes de sua religião e, por isso, tenderiam a ter escores de religiosidade
maiores que na população em geral. A diferença, portanto, poderia ser explicada
pela maior necessidade de apoio que os pacientes apresentam para enfrentar as
demandas associadas ao adoecimento (Koenig et al., 2001; Landis, 1996;
Pargament e Brant, 1998), pela busca de um significado ou explicação para seu
adoecimento (Ross, 1995) ou, até mesmo, pela tentativa de cura através da fé
(Rabelo, 1993).
Também em um modelo de regressão múltipla, o
WHOQOL-SRPBi apareceu positivamente associado aos domínios psicológico
(beta = 0,17), relações sociais (beta = 0,12), ambiente (beta = 0,11), SRPB
(beta = 0,72) e QV geral (beta = 0,10) (0,10 < p < 0,0001),
quando ajustado para idade, NSE, sintomas depressivos (BDI) e estado de saúde.
Isto demonstrou que a importância da espiritualidade/religiosidade/crenças
pessoais pode estar positivamente associada com a maioria dos domínios de QV.
Tal achado corrobora a literatura, que mostra relação positiva entre
religiosidade e relações sociais (Levin e Chatters, 1998a, 1998b; Levin e
Vanderpool, 1987). Ainda, em relação ao domínio psicológico, sabe-se que a
religiosidade pode estar associada a menores níveis de depressão (Braam et
al., 1997; Koenig et al., 1998) e maiores índices de esperança e
bem-estar (Elerhorst-Ryan, 1996), o que também pode explicar a correlação
positiva com QV em geral.
Considerando os resultados, os autores concluíram:
1) que apesar de o aumento do WHOQOL-SRPBi (escores de importância das
facetas SRPB) estar sofrendo influência de outros fatores, principalmente NSE,
em relação à qualidade de vida, espiritualidade/religiosidade/crenças pessoais,
teve uma associação positiva com alguns domínios de QV independentemente de
outros fatores envolvidos (Rocha et al., 2002); 2) que o nível de
evidência atual não permite recomendar aos pacientes que sejam mais religiosos
ou se vinculem mais à dimensão não-material de forma tão categórica conforme já
é estabelecida em relação a hábitos e comportamentos como beber e fumar, por
exemplo; 3) que, embora se trate de um estudo transversal, não sendo possível
estabelecer relações de causa e efeito, mas sim de associação, os dados
apresentados sugerem que a dimensão não-material ou espiritual deve ser
considerada como fator importante tanto no processo de adoecimento quanto no
processo de coping com a doença.
Em 2004, em pesquisa transversal (Panzini, 2004)
que validou a Escala de Coping Religioso-Espiritual (Escala CRE)
(Panzini e Bandeira, 2005a), investigou-se a esperada relação entre qualidade
de vida, coping religioso/espiritual (CRE) e saúde. Os 616 participantes
(mulheres = 65%; idade µ = 41,38 ± 18,44, 13-82 anos; solteiros = 46,8%,
casados/vivendo como = 32,5%; ensino superior = 52,1%; renda até três salários
mínimos = 25%, entre 5-10 = 24,1%), acessados nos locais que freqüentavam
[instituições religiosas e grupos espirituais não-institucionalizados = 74,4%,
universidades = 13,5%, clínicas de tratamento de saúde = 9,1% e Internet (web
mail) = 2,9%], pertenciam a diversas religiões/crenças: católicos = 40,4%;
espíritas = 31,5%; espiritualizados sem religião = 8,3%; evangélicos = 7,5%;
duas ou mais religiões simultâneas = 4,2%; afro-brasileiros (africanistas ou
umbandistas) = 3,9%; outras religiões = 2,2% e ateus/agnósticos = 2%. Além do
Termo de Consentimento Esclarecido, foram utilizados os instrumentos
WHOQOL-bref, Escala CRE e Questionário Geral.
Os resultados apontaram uma associação positiva
geral entre CRE e QV (Tabela
2), já que os escores de CRE total, que consideram as médias dos escores de
CRE positivo e CRE negativo, estiveram positivamente correlacionados com todos
os domínios de QV do WHOQOL-bref. O índice CRE negativo esteve negativamente
correlacionado à QV em níveis mais elevados do que o índice CRE positivo esteve
positivamente correlacionado à QV, indicando efeito prejudicial importante do
CRE negativo na QV. Em função disso, propôs-se uma proporção mínima de uso de 2
CRE positivo : 1 CRE negativo (valores de razão CRE negativo/CRE positivo <
0,50) para que se obtenham resultados positivos do coping
religioso/espiritual na qualidade de vida (Panzini e Bandeira, 2005b).
Testes t de Student demonstraram que aqueles
que possuíam maiores escores de qualidade de vida apresentaram maior uso de CRE
positivo e menor de CRE negativo, indicando melhor utilização qualitativa do
CRE. Esta foi a primeira confirmação empírica da proporção teórica proposta
pela autora (Panzini, 2004), já que a razão CRE negativo/CRE positivo no grupo
com QV alta (n = 94) ficou abaixo do ponto de corte sugerido (0,43) e a do
grupo com QV baixa (n = 95) ficou acima (0,71; p < 0,0001). Novos
testes demonstraram que os participantes que usaram mais coping religioso/espiritual
apresentaram níveis maiores de QV em todos os domínios do WHOQOL-bref (Tabela
3), além de níveis mais altos de saúde objetiva, freqüência religiosa e
crescimento espiritual, em comparação aos participantes que usaram menos. Por
se tratar de estudo transversal, entretanto, não pôde ser estabelecida uma
relação causal, ou seja, a direção da associação entre CRE e QV.
O estudo de Panzini (2004) corroborou dados de
literatura (Koenig et al., 1998; Pargament et al., 1998;
Pargament et al., 2001), demonstrando que também na população brasileira
existe associação positiva entre coping religioso/espiritual e qualidade
de vida e associação negativa entre CRE negativo e QV. O diferencial do estudo
brasileiro, além da adaptação da Escala CRE, consiste a utilização de uma
medida genérica, transcultural e abrangente de QV, o WHOQOL-bref. Esses
resultados podem explicar parcialmente a ambigüidade dos dados relatados por
diferentes pesquisas na relação espiritualidade/religiosidade com saúde e
qualidade de vida, pois, enquanto existem inúmeras pesquisas recentes
enfatizando o aspecto positivo, também pesa o cenário de outras, especialmente
na área clínica das psicopatologias, lembrando a influência negativa que possam
ter. Nesse sentido, a razão CRE negativo/CRE positivo pode ser um índice de
avaliação importante, por oferecer a proporção entre as estratégias positivas e
negativas de CRE utilizadas pelo avaliado, reforçando a importância de escalas
abertas a ambos aspectos da religião/espiritualidade.
CONCLUSÕES
Apesar da falta de um consenso geral sobre os
conceitos, a literatura científica tem demonstrado a existência de relação
entre espiritualidade e qualidade de vida. Vários pesquisadores internacionais
e nacionais, em grupo ou independentemente, têm se engajado em pesquisar esse
tema, tendo desenvolvido instrumentos válidos e confiáveis para acessá-lo e
produzido inúmeros estudos com razoável rigor metodológico. Ao finalizarmos,
salientamos que o campo da qualidade de vida, mais recente, engloba e
transcende o campo da saúde, envolvendo outras dimensões. No desenvolvimento
dos estudos de QV, a importância e o envolvimento das questões espirituais cedo
estiveram presentes. Portanto, entende-se que o campo da qualidade de vida pode
vir a se tornar um mediador entre o campo da saúde e o das questões
religiosas/espirituais, facilitando o desenvolvimento de intervenções em saúde
espiritualmente embasadas, por pelo menos duas razões: por ser uma área de
conhecimento mais recente e, portanto, com menos preconceito em relação à
pesquisa em espiritualidade/religiosidade; e por o construto qualidade de vida
ser mais amplo e multidimensional, exigindo o engajamento de profissionais de
diferentes áreas do conhecimento para seu melhor entendimento, tornando-o
transdisciplinar.
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